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domingo, 7 de maio de 2017

Do Jornal O ESTADO DE S. PAULO, de 11/04/1987 (pág. 53 e 54), extraio a palavra de Gilberto de Mello Kujawski sobre o best-seller

"GUERREIROS DO SOL", de Frederico Pernambucano de Mello.


Sempre me impressionaram fundo as fotografias de cangaceiros. Emana daquelas figuras torvas, armadas até os dentes, certa dignidade sombria de demônios das caatingas, capazes de realizar o inconcebível em maldades, e também em bravura. Aquele silêncio que nos colhe ao contemplar fotografias assombra-se em fascinação; a fascinação do mal, ou melhor, dos arquétipos visíveis do mal. De onde provém a autoridade ferina daqueles homens de tantas ruindades, senão de saberem encarar a morte a toda hora, sem estremecerem uma só fibra do rosto crestado pela energia do Sol e pela dureza das armas? Homens dos avessos, egressos das profundas do sertão, que nos amedrontam por não terem medo de nada, e que, ao destemerem até Deus, se sentem integrados nas hostes de Satanás. Aquele clássico punhal nordestino, atravessado na cintura de todos eles, não serve só para “matar”, e sim para sangrar ritualmente o inimigo, até a última gota, como o sacerdote sangrava no altar a vítima sacrificial. Não são homens sem Deus, são homens que cultuam Deus com os ritos do Diabo. Bandoleiros, mas não crápulas. Escravizados a um conceito arcaico de honra, sentem-se no direito de saquear e matar como quem faz justiça pelas próprias mãos. Cavalaria andante às avessas. Fotografados em bando, com seus chapéus de couro e rifles em punho, parecem sobreviventes desgarrados de Canudos, a serviço de um Antonio Conselheiro eternizado na alma popular do sertão.

Cangaço, escarninha palavra, varada de maldição. Tem o peso da canga e o relâmpago do aço.

II

“Eu fui aquele que disse
E, como disse, não nego,
Levo faca, levo chumbo,
Morro solto e não me entrego.”

A quadra popular sertaneja, da metade do século XIX, serve de epígrafe ao primeiro capítulo do livro “Guerreiros do Sol”, da autoria de Frederico Pernambucano de Mello, Editora Massangana, Fundação Joaquim Nabuco (1986). Prefácio interessantíssimo de Gilberto Freire. Frederico Pernambucano de Mello, jovem sociólogo formado na larga visão da escola gilbertiana, retoma o tema do banditismo no nordeste do Brasil. Seu primeiro cuidado foi expurgá-lo de certas interpretações ligeiras não por acaso inspiradas na retórica marxista. Como a de Cristina Mata Machado, ao considerar o cangaço como “resposta à violência do coronel”. Ou da de José Honório Rodrigues, quando o define como “resposta contra o monopólio da terra e exploração do trabalhador rural pelo latifundiário. Marx não merecia que sua dialética da luta de classes fosse assim banalizada e mecanizada por discípulos tão simplistas.

O autor, liberado de fórmulas já prontas e definitivas, retoma o tema do cangaço a partir de seus pressupostos históricos. Vai examinar “como se fez o fato”. Concluindo que o cangaço não foi nenhuma “resposta” a qualquer tipo localizado de dominação, e sim um fenômeno alicerçado numa sociedade toda ela varrida pela violência como forma de vida. A violência do cangaço não apareceu como resultado da violência dos senhores rurais, sim que uma e outra faziam coro a um sistema de vida coletiva indissociável da violência. Como diz muito bem Vamireh Chacon, o autor “viu que o banditismo agrário se insere naturalmente no quadro maior da violência rural, esquecida ou ignorada por antecessores de pesquisa, mais especificamente na violência do ciclo nordestino do gado”. Nesse mundo, a violência não era contra a lei, a violência era a lei universal. O senhor rural podia ser também um cangaceiro, e vice-versa.

Frederico Pernambucano lembra a migração do homem do Nordeste, que saiu das terras agricultáveis do massapé para “o universo cinzento da caatinga”, em fins do século XVIII e começos do século XIX, fazendo surgir um novo tipo de cultura no Interior, marcado pela predominância do individual sobre o coletivo, com o reforço vigoroso do sentimento de independência e autonomia na luta contra o contorno vasto e agressivo do sertão. O sedentarismo do ciclo do açúcar dá lugar ao nomadismo do ciclo do gado. Desenvolve-se um tipo humano agreste, combativo, prepotente, ao mesmo tempo que o cenário cultural se imobiliza no tempo, naquilo que Costa Pinto chamou de um “quadro arqueológico. O sertanejo – escreve o autor, lembrando Euclides da Cunha – não é nenhum degenerado, e sim um retrógrado, arcaizante no convívio social, na economia, na moral e na religião. Não fala português errado (como parece ao homem da cidade), e sim o mais puro vernáculo do século XVI, contemporâneo de Gil Vicente e Camões. O sertanejo nascia, crescia e vivia limitado pelo mais severo isolamento, organizando o poder por sua conta e risco, longe dos centros oficiais de administração, polícia e justiça.

O tipo do cangaceiro, neste ambiente, erige-se como o representante mais completo do conjunto dos atributos de valentia que marca o sertanejo. Explica o autor que entre o sertanejo e o cangaceiro, de início, não houve nenhum antagonismo, e sim um acordo tácito, no qual o homem do cangaço aparecia como verdadeiro arquétipo de bravura, pela liberdade selvagem que encarnava. Assim nos versos populares sobre a saga de Antônio Silvino, o “Rifle de Ouro”, ou “Governador do Sertão”, ao despontar deste século:

“Como ninguém ignora
Na minha pátria natal
Ser cangaceiro é a coisa
Mais comum e natural;
Por isso herdei de meu pai
Este costume brutal...”

Esta primeira fase foi a do cangaço “endêmico” (na terminologia do livro), bem tolerado pela sociedade local. O cangaço só passou a ser repelido por essa mesma sociedade, quando da segunda fase, a do cangaço “epidêmico”. Palavras do autor: “Esses surtos de cangaço epidêmico, em cuja etiologia se acham sempre presentes fatores de desorganização social e de consequente inibição das atividades repressoras, tais como revoluções, disputas locais, agitações de fundo místico ou político ou social, lutas de família e prolongadas estiagens, provocam o rompimento do equilíbrio que permitia à sociedade sertaneja viver, produzir e continuar crescendo lado a lado com cangaceiro, com base num compromisso tácito de coexistência (p. 45).

Com a sucessão de surtos epidêmicos é que o cangaço se criminaliza socialmente, não hesitando o autor em pintar o cangaceiro como verdadeiro bandido ou malfeitor, embora frequentemente sublimado como vingador de alguma afronta ou cruel injustiça. Esta sublimação é analisada em termos sociológicos por Frederico Pernambucano, como a teoria do “escudo ético’, assim desmistificada no livro: “Este instrumento capaz de convencer a quem o utilizava e à sociedade da nobreza da vida putativamente vingadora dos bandidos, mas que não passava de um bovarismo épico facilmente aceito como real por uma cultura carente de símbolos desse gênero” (p. 71).

À figura legendária de Lampião, titular máximo do cangaço, o jovem sociólogo dedica todo um capítulo inspiradamente titulado “As muitas mortes de um rei vesgo”. Mesmo se recusando a vestir de herói Virgulino, trata-o como rei, pela soberania de sua autoridade e até mesmo pelos seus repentes de perdão e liberalidade.

III

“Guerreiros do Sol” é livro que se lê com interesse, não só pelo que, efetivamente apresenta de sedutor, como pelo que poderia apresentar. Por exemplo, o enfoque mais vigoroso do cangaceiro em perspectiva antropológica. Acima das colocações de ordem estritamente social ou sociológica, e de qualquer juízo de valor, mesmo sem querer em nada romantizar o cangaço, a verdade é que o cangaceiro constitui uma certa variedade antropológica particular, com traços culturais e biotipo singulares e bem marcados.

Desafiando o bitolado pedantismo acadêmico que despreza qualquer observação pessoal como simples “impressionismo”, sem valor hermenêutico, e animados pelo conselho de Ortega, segundo o qual é vendo com os olhos da cara que se faz as duas terças partes de uma filosofia que não seja uma escolástica, voltemos a observar as fotografias de cangaceiros, que sempre nos impressionam tanto, como foi dito. Nota-se em todos eles uma tensão peculiar, aliada à concentração de energia que parece inesgotável, e aquele dose superior de “magnetismo animal”, esse conceito arcaico de Mesmer, por isso mesmo coerente com a tipologia arcaica do homem do sertão. Nada daquela displicência desengonçada do sertanejo em repouso, tal como fixada na página sempre lembrada de Euclides da Cunha. Pelo contrário, o homem do cangaço tem tudo do sertanejo subitamente desperto e aceso para a luta, na descrição do mesmo autor: “O homem transfigura-se. Empertiga-se, estadeando novos relevos, novas linhas na estatura e no gesto; e a cabeça firma-se lhe alta, sobre os ombros possantes, aclarada pelo olhar desassombrado e forte; e corrigem-se lhe, prestes, numa descarga nervosa instantânea, todos os efeitos do relaxamento habitual dos órgãos; e da figura vulgar do tabaréu canhestro, reponta, inesperadamente, o aspecto dominador de um titã acobreado e potente, num desdobramento surpreendente de força e agilidade extraordinárias” (Os Sertões).

O cangaceiro desdobra-se deste sertanejo pintado por Euclides, em permanente pé de guerra com o contorno. Aquele sorriso é puro negaceio. Seus sentidos adquirem hiperestreita inusitada, semelhante à dos índios, ou das feras, capaz de pressentir o inimigo à distância de muitas léguas. Sua musculatura, nada ostensiva, ganha a têmpera do aço, e seus nervos, a agilidade inesperada dos felinos.

Compare-se com as fotos dos caçadores de cangaceiros, policiais, ou “volantes”, também homens duros e valentes. Só que todos eles de forma arredondada e de cara lavada, com o ar ingênuo de verdadeiros homens da lei, sem aquela tensão psicofísica anormal, sem nada daquele éclat de pactários, ostensivo na postura dos cangaceiros. Quase a diferença entre o animal bravio e a planta.

É a vida nômade, ao ar livre, e sobretudo ao sol e aos perigos do sertão, que confere ao cangaceiro a peculiaridade do seu biótipo, e sua singularidade antropológica e cultural. O sertão nordestino e o sol são elementos inseparáveis da mesma realidade. Esta é um ambiente adusto, calcinado, suplicante, no qual o homem, para sobreviver, tem de ser em tudo o contrário de um vegetal, a saber, sensorialidade e nervosidade puras. Tais atributos, assumidos desde logo pelo sertanejo, são ainda mais aguçados na vida absolutamente sem segurança do cangaço.

O cangaceiro a cavalo em seu nomadismo selvagem está polarizado com o sol, atrelado ao sol. Por isso o título “Guerreiros do Sol”, escolhido para esse livro dedicado ao banditismo no Nordeste do Brasil, além da beleza literária, irradia certeira intuição antropológica. A deixa não escapou à habitual perspicácia de Gilberto Freire, que assim se pronuncia sobre esse ponto no prefácio que dedicou ao livro:

“Sugestão a que pode ser associada esta outra: a de, ao sertanejo do nordeste brasileiro – região de muito sol, como que masculinizante -, ter faltado maior convívio com a água: uma água como que feminilizante, feminilizante da própria culinária, nos sertões tão masculinamente ascética. E feminilizante também, através de uma frequência de banho de rio, de ação, além de higiênica, recreativa, esportiva, refrescante e capaz, como há quem suponha ser o caso entre gentes árabes, de atuar psicologicamente sobre impulsos bravios, atenuando-os e até adoçando-os.

“... Em certa página, apresenta um desses tipos de bandido, em dias de ortodoxo, indiferente tanto a prazeres de alimentação como à constância de convívio com mulher, enquanto em atividade absorvente e monossexualmente belicosa, repele o contato habitual com o feminino. Naquela página referida por Gilberto Freyre, o autor recolhe o depoimento de Sinhô Pereira, cangaceiro da velha guarda: “No meu tempo não havia mulheres no bando. Ninguém andava com mulher. Eu acho até esquisito que depois Lampião e o pessoal dele começasse a carregar mulher” (p. 82). Frederico Pernambucano ainda reproduz outro testemunho eloquente do ex-cangaceiro Balão: “Homem de batalha não pode andar com mulher. Se ele tem uma relação, perde a oração e seu corpo fica como uma melancia: qualquer bala atravessa” (p. 82).

A hipótese de homossexualismo seria precipitada e impertinente. A restrição aqui inclui qualquer tipo de contato sexual, fale-se, portanto, em “monossexualismo”, conforme a terminologia de Gilberto Freyre. A dedicação integral às armas, quando levada ao fanatismo, exige a misoginia, como garantia da invulnerabilidade do guerreiro. Na medida em que esse se abandona à tentação da mulher, ou do sexo, ele "abre seu corpo” e se expõe à virulência implacável do inimigo. Também Guimarães Rosa sabia muito bem dessas coisas, e o drama de Diadorim, em “Grande Sertão”, tem os mesmos pressupostos.

No entanto, a analogia surpreendente e inesperada do homem do cangaço, modelado pela disciplina do sol, das armas, e do ascetismo sexual, na tensão crispada e solitária do princípio masculino, essa analogia se revela é com a figura do guerreiro, tal como descrita pelo poeta-soldado japonês Yukio Mishima, no livro traduzido sob o título “Sol e Aço”. “Sol e Aço” fazem o contexto do homem do cangaço e do samurai de Mishima. Indagado, de certa feita, como conseguia ativar tanto o brilho do seu fuzil, respondeu Lampião: “Só o aço com o aço dá esse brilho...”

IV

Em “Sol e Aço” a autoafirmação da virilidade na vida militar chega até o delírio, o delírio catastrófico que conduzirá à morte fulgurante do herói, sem que a mais leve sombra do feminino perpasse pelo texto do poema em prosa. A ascese do sol e do aço educa o corpo e o espírito de Mishima na sublimação do épico, que liga a terra e o céu, a vida e a morte, o tempo e a eternidade. “Mais tarde, muito mais tarde, graças ao sol e ao aço, eu viria a aprender a linguagem da carne, mais ou menos como quem aprendesse uma língua estrangeira. ” Só que essa “linguagem da carne”, apreendida pelo guerreiro nipônico, não tem a menor afinidade com o feminino nem com os abandonos do erotismo. A carne de Mishima, revigorada pelo sol e pelo aço, não se consuma nem no amor heterossexual nem no amor homossexual (ao menos neste livro), e sim na tensão sobre humana dos exercícios militares. Mishima assimila plasticamente o vigor do sol na exuberância de sua musculatura, a qual ia adquirindo cada vez mais as qualidades do aço: dureza flexibilidade e brilho. A ação, fielmente, me ensinou a correspondência entre o espírito e o corpo. ” Mishima não resiste ao narcisismo romântico, traído nestas linhas: “Em especial, me era caro um impulso romântico em direção à morte, mas, ao mesmo tempo, eu exigia um corpo estritamente clássico como veículo desse impulso”.

A chave da analogia entre os “guerreiros do sol” e o samurai de Mishima está na radicalização unilateral do princípio masculino hermetizado em si mesmo como fonte invulnerável de energia épica, temperada pelo sol e pelo aço.

A diferença é que os cavaleiros do sol, bons centauros do sertão, jamais perderam a pertinência com a Terra, ao passa que o herói japonês, embriagado de romantismo, escorregou voluntariamente rumo ao infinito, por aquela tênue linha de fuga que liga a Terra ao Céu, ao azul vertiginoso do Céu, que o fulminava com apelos irresistíveis.

Fonte: facebook
Página: Antonio Corrêa Sobrinho
Grupo: Lampião, Cangaço e Nordeste
Link: https://www.facebook.com/groups/lampiaocangacoenordeste/?multi_permalinks=641463249395956%2C641359582739656&notif_t=group_activity&notif_id=1494034611185014

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