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sexta-feira, 26 de maio de 2017

DA CANGA AO CANGAÇO

*Rangel Alves da Costa

O boi geme sob a canga. O ferrão da vara lhe adentra a pele, fere, machuca, faz sangrar. Mas não adianta o berro, o gemido, o mugido de dor. O ferrão é insensível, a vara também. O carreiro não tem olhos para o sofrimento nem para o sangue espargindo a vermelhidão da crueldade.

O homem também geme sob a canga. O seu algoz o escraviza como ser submisso, um reles qualquer que nasceu pra sofrer. Por isso dá-lhe de chibata, de ferrão, de açoite, de lapoada. Ainda o coloca no tronco para completar o serviço.


A estrada é longo, dura, espinhosa, difícil demais de seguir. O carreiro - carrasco ferrador - sequer quer saber do cansaço e do sofrimento do bicho. Ele vai em riba do carro, sentado ao redor da carga, protegendo-a. O bicho na canga que se lasque, que morra.

Também ao carrasco humano, o capataz ou algoz, o executor da crueldade, pouco importa a ferida que vai abrir na pele, no sentimento ou no coração daquele que escraviza, que mantem debaixo de canga. Ora, é seu escravo e como tal deverá padecer ao seu desejo.

Assim, abaixo da canga vai sempre aquele que carrega o peso da submissão, da escravidão, da sujeição, do servilismo, da humilhação. E tanto bicho como homem é tratado assim, na covardia do ferro e do fogo, do grilhão e da ponta afiada, da chibata e do açoite.

Quem merece viver assim? Aos olhos modernos seria o fim do mundo. Ao menos teoricamente, não mais se admite a escravidão em terras desenvolvidas nem se comunga com maus-tratos aos animais. Mas nada que tenha desparecido de vez. Há jugo e cativeiro por todo lugar.

Qual a dor sentida por um bicho-animal ou um bicho-homem debaixo do aprisionamento da canga? O sofrimento é mudo, ainda que grite. A dor é escondida, ainda que sangre aos espasmos. E assim por que o algoz jamais quer saber se ali adiante existe uma pedra ou um coração.

Por isso mesmo que a canga simboliza o trato sempre humilhante. Por isso mesmo que a canga representa a incoerência, a arrogância, a mais absurda violência, pois simplesmente impondo o sofrimento. Daí que a canga é a aprisionamento da força, da alma, de qualquer forma de dignidade.

Há de se observar que a canga acima do pescoço sempre força que a criatura se mantenha de cabeça baixa. Quando mais abaixada a cabeça mais fácil será de domá-lo, dominá-lo, feri-lo, açoitá-lo, guiá-lo por onde quiser. Quanta mais baixa a cabeça mais se perde a força de pensar, de agir, de reagir aos tormentos que lhe são impingidos.

Sob a canga, o mundo ao redor é somente aquele que está naquela direção ou mais abaixo. Não há céu, não há horizonte, não há liberdade de se desejar novos ares. E qualquer tentativa de erguer um pouco mais a cabeça logo será reprimida com mais ferroadas, com mais atrocidades.

Foi assim que surgiu o cangaço. Não se espante não, pois foi assim mesmo. A partir de homens tidos, tratados e maltratados, feito bichos e mantidos abaixo de cangas. Neste sentido é que se diz que o cangaço surgiu do peso da canga, tornado insuportável demais para ser carregado.

Homens tratados feito bichos, feito escravos, feito reles submissos. Sertanejos mantidos nas agruras da dor e do sofrimento pelas perseguições da política e do poder. Nordestinos considerados sem qualquer valia perante os senhores dos latifúndios, aqueles arrogantes senhores donos do mundo.

E sobre os humildes, porém valentes e encorajados homens, um dia a canga deixou de ser suportada através do ferrão do poder. Aqueles valentes e decididos homens não mais aceitaram ser chicoteados, feridos e humilhados, pelas injustiças da justiça, pelas baratas perseguições, pelos aviltamentos impostos pelos governantes.

Que situação mais desumana se manter tão nobres e valentes sertanejos sob a canga. Mas assim se fazia. Ora, o homem da terra era sempre desprotegido em tudo. Seus direitos eram sempre usurpados pelo poder. Não podia recorrer a ninguém que lhe resguardasse a mínima dignidade.

O que fez, então? Teve a coragem de tirar tanto peso de suas costas, de se desfazer das amarras do seu pescoço, de jogar ao longe os grilhões e as correntes, e se assumir como dono do seu destino. E pegou em arma para mostrar sua honradez, para dizer que quem com ferro fere com ferro será ferido.

Assim, o cangaço nasceu desses homens desgarrados da canga. Da canga indignamente mantida na sujeição foi que nasceu o cangaço como forçada e dura libertação. E se fez cangaceiro todo aquele que ainda levava no lombo o sangue apenas estancado pelo sofrimento outrora imposto.


Escritor

blograngel-sertao.blogspot.com

Enviado pelo professor, escritor, pesquisador do cangaço e gonzaguiano José Romero de Araújo Cardoso

http://blogdomendesemendes.blogspot.com


http://blogdomendesemendes.blogspot.com

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