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domingo, 12 de fevereiro de 2017

AMIGOS:

Por Antonio Corrêa Sobrinho

Do cangaço sempre se ocupou a imprensa brasileira, ela que antes do rádio e da televisão, era a voz do mundo, a tradutora, a intérprete dos fatos e acontecimentos, por isso, é ela, a imprensa escrita, o prelo, fonte primordial da história do cangaço. 

Jornais, como o Estado de S. Paulo, A Folha, o Globo e inúmeros outros diários brasileiros, especialmente os impressos nas capitais nordestinas, não precisavam ser rogados para divulgar notícias, histórias, fazer comentários, apresentar e dar opiniões sobre o banditismo no sertão daqueles idos, principalmente quando estavam em cartaz façanhas de Antônio Silvino e de Lampião, principais ícones do aterrorizante fenômeno. Porque era um forte chamariz de leitores, o cangaço, perdendo apenas para as notícias da Guerra.

Neste texto, de 1930, o escritor, advogado e jornalista cearense, Leonardo Mota (1891-1948), reconhecidamente um dos pioneiros da pesquisa sobre o cangaço, nos delicia com casos envolvendo Silvino, Lampião e Lucas da Feira; artigo que, não é de todo improvável ter sido lido por Lampião e Silvino, quem sabe?

Jornal O GLOBO – 23/10/1930
EPISÓDIOS DA VIDA DOS CANGACEIROS
NO SERTÃO DAS TOCAIAS

Brincadeira de homem... – Um precursor de Lampião

O cangaceiro Antonio Silvino

Antônio Silvino fazia-se respeitado de seus satélites. Disciplinava-os. Sabia assegurar a conveniente distância que deve existir entre comandantes e comandados. Jamais permitiu atrocidades que não houvesse, em pessoa, determinado.

Chegara ele com a sua récua a uma fazenda. À hora do improvisado almoço, um cabra, o Tempestade, se deu ao luxo de reclamar:

- “Ô arroz ensosso de todos os diabos!”

Um relâmpago de cólera fulgiu nos olhos de Silvino, que, findo o repasto, foi falar à mulher do fazendeiro:

- “Dona, a senhora tem sal em casa?”

- “Tenho, seu capitão. Eu vi aquele homem não gostar... Vossenhoria me desculpe, me perdoe o arroz sair ensosso! foi coisa do avexame, do aperreio do preparo...”

- “Nhóra não, não é por isso não: eu quero é saber se a senhora me pode vender meio litro do seu sal.”

- “Posso lhe ceder; vender, não! O capitão leve o sal que não lhe custa nada e é dado de gosto!”

- “Nhóra não, não é pra carregar não. É um ensinamento que eu quero dar naquele cabrocha que falou do arroz. Me vá ver meio litro, por bondade!”

Atendido, Silvino pediu uma bacia, derramou dentro o sal, dissolveu-o com uma porção d’água, e voltando ao terreiro, onde o Tempestade esgaravatava a dentadura, obrigou-o, de punhal à mão, a beber toda aquela água horrivelmente salgada:

- “Isso é pra você, seu bruto, perder o costume de botar defeito no que lhe dão, de graça! Engula! Ou engole, ou morre! Comeu ensosso, beba salgado que é pra carga não ficar torta... Cabra sem criação!”

Daí a pouco, o Tempestade padecia sob a ação do purgante mais que enérgico...

Virgolino Ferreira da Silva

Lampião aparceira-se com os miseráveis a quem capitaneia. Troca insultos e graçolas com os mesmos. Falta-lhe o espírito autoritário de Silvino. Apenas na hora dos combates é cegamente obedecido: todos creem na sua invicta estratégia de guerrilheiro caboclo.

Antonio Ferreira irmão de Lampião

Antônio Ferreira irmão de Virgulino também se acamaradava em excesso com os restantes componentes do bando. Um dia, Lampião mandou que o mano e mais quatro homens fossem à casa dum seu protetor, e esperou no mato que regressassem. No alpendre da casa em questão havia uma rede armada. Os cinco bandidos, empurrando-se violentamente, disputavam o gozo de alguns momentos na tipoia. Nesse ruge-ruge de encontrões um fuzil cai no solo e dispara, prostrando morto Antônio Ferreira, atingido pelo tiro no mamilo esquerdo.

Compungidos, os quatro criminosos voltaram imediatamente à presença de Virgulino. Conduziram o cadáver e narraram a casualidade da fatal ocorrência. Lampião ouviu-os silencioso. A cabroeira, solidária com o chefe, censura os recém-vindos, lembrando que “por via duma dessas” é que o povo diz que brincadeira de homem cheira a defunto”. Sabino Gomes, mais perverso, insinua que a história está mal contada”...

Lampião decide: não quer mais a companhia dos autores da vadiação em que morreu o Antônio. Expulsa-os do grupo. O armamento, porém, era seu, dele. Exige imediata restituição. E apenas os quatro se haviam despojado das armas. Lampião, auxiliado por Sabino, os liquida, a tiros e facadas...

Um Precursor de Lampião

O cangaceiro Lucas da Feira

Na primeira metade do século passado, um negro foi o terror do sertão baiano. Era o “Lucas da Feira”, assim chamado por ter sido o município de Feira de Santana teatro de toda a sua atuação delituosa.

Durante vinte anos, Lucas foi o assombro, o pesadelo dos sertanejos. Contavam-se por centenas as suas vítimas. O negro salteador, ladrão e assassino, raptou e violentou inúmeras donzelas, matando-lhes os pais e irmãos, se estes ofereciam resistência à sua lubricidade.

Há uma lenda, segundo a qual Lucas começou a esmorecer no seu fadário repelente, depois que, ao passar pela sepultura duma virgem que assassinara e enterrara no mato, sentiu um perfume delicioso e viu de cima da cova levantar o voo um bando garrulo de pombas brancas. Isso lhe teria, desde então, irremediavelmente quebrantado o ânimo feroz.

As façanhas desse precursor de Lampião perduram na tradição oral dos feirenses. Quando entre eles estive, não me foi difícil reunir as notas que estão propiciando o tracejamento destas linhas.

O velho tabaréu, a quem perguntei se Lucas era valente, deu um muxoxo e contestou:

- “O que ele era era um grandíssimo desalmado. Era perverso, era levado de não sei-sei-que-diga, mas era frouxo: urinou-se todo na hora da morte...”

Não lhe quis obtemperar que a micção não é estranhável nas mortes por enforcamento. Preferi deixa-lo desatar a língua, a seu modo:

- Lucas foi o diabo em figura de cristão. Deus o perdoe! Aquilo não era gente. Uma vez ele agarrou um negro beiçudo na estrada e sabe que é que fez com ele? Prendeu com um prego caibral o beiço do infeliz numa árvore. Quando acabou disse ao suplicante que ia não seu não seu aonde e mais tarde voltaria para o castrar. Foi ele se afastar, o negro fez finca-pé, rasgou o beiço e ganhou o mundo na carreira, porque só assim se livrava da outra ameaça, a mais perigosa... E sabe? o Lucas estava escondido numa moita e se rindo: ele queria era que o negro mesmo rasgasse o beiço... Doutra feita, batendo palma e cantando, ele fez uma mulher grávida dançar, dando umbigadas nos estrepes dum pé de mandacaru. Aquele Lucas foi o cão em pintura de gente! 

Encontrando-se, um dia, com um miserável que vinha aqui para Feira, trazendo uma carga de chicotes para vender, ele fez o desgraçado botar a carga abaixo e com cada chicote deu-lhe quatro, cinco, lapadas de arrancar couro e cabelo. Quando cansou o braço explicou: - “Isso é pra quando você tiver de vender os seus chicotes, poder garantir de ciência própria que eles são bons.”

- E foi fácil prender o Lucas da Feira?

- Qual fácil! foi o diabo! O governo da Província chegou a prometer um prêmio de não sei quando contos de réis a quem desse conta dele vivo ou morto. Mas o negro, para se esconder, tinha pauta com o capiroto! Quando ele foi preso houve um festão que durou três dias, aqui na Feira de Santana. Gente que nunca tinha dançado desenferrujou as canelas. Na ocasião em que ele, com as pernas amarradas por baixo da barriga dum cavalo, entrava na cidade, os sinos das igrejas tocavam que parecia chegada de bispo, o foguetório estralava nos ares, não ficou ninguém dentro das casas, e deu-se até o milagre de um paralítico, um entrevado, sair correndo de rua afora, só para ir ver o Lucas...”

- E quem foi que o conseguiu prender?

- “Foi o Cazumbá. Esse Cazumbá era um oficial de justiça criminoso, que, com a promessa de perdão do crime e com o olho no dinheiro do prêmio, perseguiu e prendeu o Lucas. Na hora da prisão, deu-lhe dois tiros no braço esquerdo. O braço arruinou e os médicos tiveram de o cortar. Dizia o finado meu avô que foi uma coisa engraçada... Depois da operação um menino pegou o braço de Lucas e saiu correndo pra rua, pra mostrar ele ao povo. Um sapateiro correu em casa, trouxe uma palmatória e esmagou com “bolos”, de sustância a mão de Lucas, o povo todo achando graça nisso, satisfeito...” 

E a sorrir também, e como que a despertar reminiscências, o velho feirense concluiu:

- “Sim! eu ia me esquecendo: sabe quem foi o carrasco do Lucas, na hora de ele ser pendurado na força do Campo do Gado? Pro senhor ver as voltas que o mundo dá! A justiça de Deus tarda, mas não falta. Quem faz neste mundo, aqui mesmo paga. O carrasco de Lucas foi um rapaz cujo pai o Lucas tinha assassinado e cujas três irmãs o Lucas tinha desonrado, quando esse rapaz ainda era meninote...

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