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sábado, 26 de abril de 2014

SANTO SOUZA, A POESIA ABENÇOADA

Por Rangel Alves da Costa*

Nesta sexta-feira, 18 de abril, a literatura sergipana e a poesia brasileira perderam um dos maiores expoentes da arte do verso esculpido com a maestria dos grandes artistas da palavra. José Santos Souza, ou simplesmente Santo Souza, faleceu aos 95 anos, em sua própria residência, talvez enquanto sonhava ornando uma estrofe que não seria escrita.

Natural de Riachuelo, Santo Souza viveu em sua cidade natal até os 17 anos. Estudou somente até o 3º ano primário, e daí em diante se fez reconhecido na condição de autodidata. Já em Aracaju, trabalhou como manipulador em farmácia durante mais de 25 anos. Manipulando fórmulas e medicamentos, talvez o fizesse com o mesmo esmero com que trabalhava a palavra.

Sua preocupação maior em escrever a ter seus versos publicados, fez com que muitos achassem que havia abdicado de sua arte maior, eis que permanecia durante muito tempo sem publicar qualquer obra. Ainda assim foi grande sua produção literária: Cidade Subterrânea (1953), Caderno de Elegias (1954), Relíquias (1955), Ode Órfica (1956), Pássaro de Pedra e Sono (1964), Concerto e Arquitetura (1974), Pentáculo do Medo (1980), A Ode e o Medo (1988), Obra Escolhida (1989), Âncoras de Arco (1994), A Construção do Espanto (1998), e Rosa de Fogo e Lágrima (2004), Réquiem para Orfeu (2005), Deus Ensanguentado (2008) e Crepúsculo de Esplendores (2010).


Foi um dos escritores sergipanos mais premiados em concursos literários, sendo também constantemente laureado pelo conjunto de sua obra, como ocorreu com o Grande Prêmio de Crítica 1995, concedido pela associação de Críticos de Arte de São Paulo. Sempre recluso, vivendo das e para as letras, carregava na feição e no acolhimento a singeleza dos grandes homens. Era o maior poeta vivo de Sergipe e um dos maiores do Brasil, mas se sentia melhor sendo reconhecido apenas como Santo Souza.  Foi membro da Academia Sergipana de Letras, ocupando a cadeira nº 03; membro efetivo da Associação Sergipana de Imprensa; além de Membro Correspondente da Academia Paulista de Letras. Também era integrante da Loja Maçônica Cotinguiba.

A poesia de Santo Souza possuía no orfismo sua vertente primordial. Poeta órfico porque abordando temas sacros, investigando os mistérios da alma, trabalhando conceitos ritualísticos e colocando o ser humano como dependente de forças superiores. O ensaísta e crítico de arte Sérgio Milliet, ao referir-se ao livro Ode Órfica, de 1956, o considerou como uma meditação sobre os mistérios da vida, bem como a desilusão dos homens. Eis a presença do orfeísmo em sua obra, nas estrofes iniciais de Ode Órfica I, do livro homônimo de 1956:

Era tão clara a tua voz, e tão
limpo o teu canto inaugural, ó noite,
que o tempo adormecia em tuas mãos!
De início, rejeitamos teus conselhos
dissimulados. Nautas fugitivos,
eis que a nave de Orfeu, que pilotávamos,
não nos pertence mais, pois a ofertamos
àqueles que hão de vir colher conosco
a treva e o medo, embora eles, no lago,
com a vida e as águas entre os braços, nos
surpreendam no triângulo da morte,
os olhos florescendo como peixes
que o teu milagre, ó noite, fecundou!

Transportamos pirâmides nos ombros,
para, sobre elas, construir o mundo
que nós, por sermos livres, sugerimos.
De música fizemos nossos mares,
para conter o céu que nos persegue.
Mas somos frágeis para suportar
a cabeça do Eterno, que se inclina
sonhando sobre nós, enquanto vamos,
ladrões famintos, carregando sombras.
Morrer? Não era a morte o que sonhávamos.
Somos pobres demais para morrer
com tanto ouro nas mãos, tanto arco-íris
nos olhos desta aurora que engendramos.

Transportamos pirâmides nos ombros, escreveu o artista. E para, sobre elas, construir o mundo, acrescentou. Em seguida diz que o homem é frágil demais para suportar os grandes sonhos, vez que as esperanças são roubadas por qualquer um. Mas não significava dizer que o homem deve se curvar e esperar a morte. Não, pois a vida possui riquezas demais para lhe oferecer. E Santo Souza compreendia isso em profundidade.

Sua poesia transcende a simples escrita. Seus versos não são casuais ou ocasionais, vez que tomados de ritos, místicas, simbologias religiosas, como luzes surgindo quase mortas em mosteiros medievais tentando avistar os mistérios do mundo. Neste sentido, é também esotérica, permeada de ocultismos e segredos que devem ser revelados pelo próprio leitor. Na vida, enxerga o enigma, transforma em verso e nos brinda com uma profusão de encontros. Tais aspectos podem ser observados nos seguintes versos de Elegia número 16, do livro Caderno de Elegias, de 1954:

Criaram flores de existência efêmera,
criaram noites e auroras nos caminhos,
aquários musicais para a canção
e estátuas para a vida e para a morte.

Criaram o teto do céu que sustentamos
em colunas de estrelas e de mares
e os rios que afagamos, derramando
a poesia da vida em nossas mãos.

E criaram também rios insones
que as nossas mãos jamais hão de acolher:
criaram faces com sulcos para as lágrimas,
pois havia corações para sofrer.

Mas sob o teto do céu que sustentamos
nós somos flores de existência efêmera
e – estátuas para a vida e para a morte –
nos deram olhos humanos para o pranto!

Santo Souza fazia parte do círculo remanescente dos grandes poetas sergipanos. Seu percurso foi longo e com estrada laureada já desde outros tempos, ainda na vivência e convivência de um fazer poético verdadeiramente comprometido com a poesia enquanto arte delineada tanto na forma como no conteúdo. Sua preocupação com a visualização, o brilho e a intensidade dos versos foi uma de suas principais características.


O artista não se contentava com a pedra bruta. Talhava a pedra para oferecer a arte, e tudo num remanso que só mesmo o tempo para compreender o que tanto tecia, forjava e cinzelava aquelas mão negras, sempre cuidadosas com cada verso. Sabia que não tinha a eternidade para preservar sua escrita, e somente o cimento férreo da criatividade poética para eternizar o seu canto. E por isso mesmo forjou a palavra para a imortalidade, pois sabendo que o homem era apenas o seu condutor. Neste sentido, lê-se no seguinte excerto do Canto II, do livro Ode Órfica:

Era vasto o domínio. Nosso olhar
limitava o destino das fronteiras
por onde a morte inútil circulava.
Calculamos o tempo e o esperdiçamos.
Fomos tardos no avanço, e cedo vimos
fugir de nossas mãos o leme, e a rota
se perdeu. Nosso canto, diluído
nas águas, já não rege o itinerário
desta sagrada luta que engendramos:
perdido o jogo, a morte nos suplanta.

Mas o jogo jamais estará perdido, Santo Souza. Mesmo que o canto já não direcione o itinerário da sagrada luta, ainda assim o poeta continuará com sua voz sob os templos onde as musas eternizam a grande arte dos escolhidos.

Poeta e cronista

blograngel-sertao.blogspot.com

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