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domingo, 8 de dezembro de 2013

Uma História de Amor e Fúria: Da Balaiada ao Cangaço Parte I Por:Verônica Kobs


Uma história de amor e fúria é um filme brasileiro de animação, dirigido por Luiz Bolognesi, que estreou em 2013. Nele, a História do Brasil é contada a partir das lutas e conflitos que construíram o país e que até hoje fazem parte da identidade nacional. O filme teve boa repercussão e foi indicado para o Annecy, festival que, com Uma história de amor e fúria, contou, pela primeira vez, com um representante brasileiro na competição.

Mais de quinhentos anos de História são distribuídos em confrontos que constituem o eixo da narrativa. No Brasil Colônia, europeus e tribos indígenas encenam conquistas e derrotas que resultam de enfrentamentos sucessivos. O segundo momento remonta à época da escravatura, com destaque ao movimento da Balaiada, protagonizado pelos militares comandados pelo Barão de Caxias e pelos revoltosos[1]. Na metade do filme, os períodos da ditadura e da pós-ditadura apresentam novo confronto, entre as sociedades civil e militar. Finalmente, depois de contemplar tipos distintos de lutas e combates, em tempos também diferentes (o passado remoto e o passado recente), o filme cria um mundo no futuro, mais especificamente no ano de 2096, com algumas grandes transformações possibilitadas pelo avanço tecnológico, como ocorre em qualquer filme de ficção científica. Nessa sociedade “provável”, água é ouro e, por isso, torna-se o principal motivo das lutas pelo poder.


Boa parte da crítica reclamou da História longa e condensada demais e não viu com bons olhos o tratamento maniqueísta dado à trajetória do protagonista: “(...) o primeiro aspecto a ser discutido é a simplificação brutal da história do Brasil como uma sucessão de confrontos sangrentos entre opressores e oprimidos” (COUTO, 2013). É isso. O personagem principal é sempre o mesmo (pelo menos em essência). Ele morre e renasce, para participar de novas lutas, derrotas e conquistas. O personagem é um só, que se transmuta de guerreiro tupinambá a líder dos revoltosos, na Balaiada, a guerrilheiro na ditadura e, depois, a jornalista do futuro. O filme de animação tem, de fato, essa característica de suprarrealidade, em que é possível um personagem nascer e morrer diversas vezes, para completar seu destino de revolução e de amor por Janaína. Além disso, não se pode desprezar o fato de que parte da história se passa em um futuro distante, o que ajuda a encarar grandes saltos no tempo e na História do Brasil e o atavismo do personagem principal como verossímeis, no contexto da animação e da ficção científica. 

O destino do personagem é longo e se renova a cada vida, a cada sociedade e a cada conflito que se estabelece.

Entretanto, o lugar dele é sempre entre aqueles que lutam por liberdade, pelos direitos e por melhores condições de vida e de trabalho, em oposição ao poder hegemônico. Nesse aspecto, voltamos à Balaiada, que, no filme, é mostrado de forma menos redutora, sem o ranço didático próprio dos livros de História. Em Uma história de amor e fúria, não só são revistos os papéis daqueles que tomaram a frente do movimento. A animação mostra também a relação legítima que existe entre a Balaiada e o Cangaço:

Essa nossa guerra é apenas uma data nos livros de História. Ninguém conta que Caninana, Sete Estrelas e Raio escaparam e ficaram vagando pelos sertões e aí nasceu o Cangaço. Foi o jeito que a turma que não é de abaixar a cabeça achou pra continuar lutando. (UMA HISTÓRIA, 2013)

Essa passagem opõe-se claramente ao discurso histórico “chapa-branca”, quando caracteriza a Balaiada apenas como uma data e quando denuncia a omissão que se faz da relação que existe entre a luta dos balaios e o início do Cangaço. Outro dado relevante é o elogio que se faz à tenacidade e ao desejo de justiça daqueles que participaram dos dois movimentos.


A referência é rápida, mas uma cena consolida a relação entre os dois movimentos. Quando o líder Manoel dos Anjos é morto, transforma-se em um pássaro. Sua imagem, após levar o tiro, de braços abertos e prestes a cair, já sugere isso. Seus braços parecem asas e se abrem como se ele fosse alçar voo. De fato, os militares, no lugar do corpo, veem apenas a ave, que voa sobre os companheiros que conseguiram fugir. A cena, então, passa a focalizar o grupo de cangaceiros em primeiro plano.

Em entrevista à Revista de Cinema, o diretor do filme explicou por que escolheu a Balaiada como um dos episódios históricos que compõem a animação: “(...) ficamos em dúvida entre a Balaiada, a Revolta dos Malês e a Cabanagem. Escolhemos a Balaiada porque foi nesse momento que nasceu o cangaço e o exército brasileiro” (SCHENKER, 2013). 


Apesar de breve, a associação entre balaios e cangaceiros é bastante salutar, porque contesta a “versão oficial” dos fatos e porque demonstra uma luta sem interrupções; ela apenas se renova. Astolfo Serra (citado por Sousa (2013)), em seus estudos sobre a Balaiada, também faz referência a nomes que, depois, voltariam a ser mencionados em textos sobre o Cangaço:

Ao contrário do que se pensa, na Balaiada, conheceu-se um incontável contingente de rebelados, muitos hoje não são nem conhecidos. Apreciando essas informações, faço uso do Pe. Astolfo Serra que afirmou (1948, p. 166):

“Novos chefes se apresentam com suas comitivas de rebeldes. (...). Designam-se mutuamente por nomes simbólicos e são Relâmpago, Corisco, Raio, Caninana, Sete Estrelas, Teteu, Andorinha, Tigre, etc. – toda uma série de homens rudes e sequiosos de aventuras e de vinditas”.(SOUSA, 2013)

Muito mais do que o fato de a Balaiada ter sido o movimento precursor do Cangaço, é preciso pensar sobre as relações de diferenças e semelhanças que existem entre eles. A continuidade é inegável, mas a recontextualização garantiu as idiossincrasias responsáveis pela evolução da luta.


No campo das diferenças, deve-se ressaltar, fundamentalmente, que o Cangaço não foi um movimento pontual, tal como a Balaiada. O Cangaço foi um movimento de maior amplitude geográfica, de maior duração[1] e mais complexo. Por esses motivos, compreende inúmeros aspectos, até mesmo divergentes, em algumas situações. Prova disso era a relação oscilante de Lampião com as autoridades[2]. Os interesses mudavam e exigiam novos acordos. Alguns fazendeiros e proprietários de terra davam guarida aos cangaceiros em troca da proteção[3]. Do mesmo modo, o Cangaço, apesar de ser oficialmente combatido pela Polícia e pelo Governo, servia de grupo de auxílio emergencial para manter a ordem e combater os inimigos, em ocasiões extraoficiais. Esse poder de negociação de Lampião, aliado à necessidade de adaptação constante, foi considerado o principal estratagema para a sobrevivência dos homens e para a longevidade do movimento. Fazia-se uso da política do favor, que “ponto por ponto, pratica a dependência da pessoa [...]” (SCHWARZ, 2000, p. 17). 

Em se tratando de dependência, é imperativo que exista uma hierarquia, como explica Roberto Schwarz: “O favor é, portanto, o mecanismo através do qual se reproduz uma das grandes classes da sociedade, envolvendo também outra, a dos que têm” (SCHWARZ, 2000, p. 16). O inusitado é que o dominante e o dominado alternavam os papéis: ora os governantes e os proprietários de terra davam e os cangaceiros recebiam, ora o bando de Lampião assumia o poder, para dar aquilo que era caro ao governo e aos latifundiários. Estabelecia-se, assim, uma relação de equilíbrio, que previa troca e negociação constantes. Além disso, muitos estudiosos mencionam a importância da mobilidade do bando, impedindo que fosse alvo fácil durante as diligências.

No que diz respeito às semelhanças, elas estão, em sentido amplo, na relação de submissão do povo em relação ao poder oficial e, depois, no movimento de sublevação como flagrante reação popular aos desmandos dos governantes. Ainda nesse aspecto mais geral, merecem destaque a consolidação de um poder paralelo, extraoficial, e a resistência (que, aliás, tornou-se uma característica emblemática e inerente à identidade do negro e do sertanejo, que protagonizaram os dois movimentos em questão). No que diz respeito à Balaiada no filme, temos o seguinte comentário:

A visão mais interessante refere-se à figura histórica de Duque de Caxias, patrono do exército brasileiro, e que foi transformado em estátuas e logradouros por aí, mas no filme é o responsável pelo fim de um movimento popular, a Balaiada. O movimento é retratado na segunda parte do filme, e as figuras de herói (Duque de Caxias) e vilão (o Balaio, líder do movimento) são questionadas. (PASTORELLO, 2013)

Continua...
Verônica Daniel Kobs
Professora de Imagem e Literatura e de Literatura e Estudos Culturais, 
no Mestrado em Teoria Literária da Uniandrade (Curitiba-PR). 

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A Festa da Padroeira - 08 de Dezembro de 2013

Por Geraldo Maia do Nascimento



Mossoró está em festa. É dezembro, e como acontecem todos os anos, a comunidade católica celebra a festa de Santa Luzia, a “Santa da eterna claridade visual”, Padroeira da Cidade. E no período que vai do dia 03 ao dia 13, Mossoró se transforma num grande santuário, onde a Virgem de Siracusa é reverenciada. E mantendo uma tradição centenária, o profano e o religioso se misturam, pois no mesmo pátio onde a novena e as missas são celebradas, acontece a quermesse com seus jogos de roleta, argolas, seus leilões e barracas de vendas. É a festa, destino de milhares de fies, alguns vindos de muito longe, que durante todo o período ali comparecem para acompanhar a novena e depois se divertir com a família na quermesse. E o ponto alto da festa se dá no dia 13, dia de Santa Luzia, quando a festa é encerrada com uma procissão quilométrica, a maior do Estado, onde mais de 100 mil pessoas acompanham, cantando e orando, agradecendo por graças alcançadas.
               

A devoção dos mossoroenses por Santa Luzia foi à causa da criação da cidade. De uma pequena capela construída em 1772, surgiu o povoado, depois Vila e Cidade de Mossoró. Tudo começou quando em 5 de agosto de 1772, a Provisão das Dignidades do Cabido de Olinda concedeu a Antônio de Souza Machado, Sargento-Mor da ribeira do Mossoró e sua mulher Rosa Fernandes, autorização para construir uma capela na fazenda Santa Luzia, de sua propriedade, em cumprimento de promessa feita por sua intercessão. No mesmo ano a capela foi erguida e em 25 de janeiro de 1773, era celebrado o primeiro ato litúrgico. Cinqüenta e oito anos depois de construída, a pequena capela passou por uma reforma, reforma essa para a qual se mandou buscar no Açu o mestre pedreiro Manuel Fernandes que veio com um escravo e um mestre de obras. A nova inauguração se deu em 30 de dezembro de 1830. Em 27 de outubro de 1842, pela resolução número 87, a Capela de Santa Luzia era elevada à categoria de Matriz, desdobrada assim da freguesia do Apodi a que esteve ligada durante setenta anos. E nesse ano se dá à primeira festa de Santa Luzia. São 171 anos desde aquela data, e em apenas três oportunidades não houve os tradicionais festejos no dia da sua Padroeira. 

A primeira foi em 1860; Naquele ano, a Irmandade de Santa Luzia, em reunião realizada em 8 de abril, resolveu que não se festejasse a Padroeira, enquanto não se desse por terminado o serviço de reforma da Igreja Matriz, que continuava em obras. Na verdade, não foi uma reforma. O prédio foi totalmente refeito pelo vigário Antônio Joaquim, num trabalho que durou 10 anos, de 1858 a 1868, mesmo assim sem as torres, que foram construídas bem depois. 

A segunda ocasião em que não se comemorou a festa de Santa Luzia foi em 1865, ainda por a igreja encontrar-se em obras, como consta em um livro de atas da Irmandade. Determinava aquela instituição, que o dinheiro que seria gasto na festa fosse aplicado na construção do templo.

Setenta anos depois, em 1935, a festa de Santa Luzia mais uma vez deixava de ser realizada. E dessa vez a decisão foi do próprio pároco, o Padre Luís da Mota. A razão apontada era o estado de intranqüilidade pública reinante no Estado, em particular em Mossoró, por causa da intentona comunista deflagrada em Natal – a Revolução Vermelha – como ficou conhecida, que tomou o governo e instalou ali a miniatura de um “soviet”, criando órgãos administrativos e fazendo circular um jornal “A Liberdade”. Essa proibição rendeu várias críticas ao vigário. Diziam alguns: “- Mas, já se viu que coisa! Agora, não tendo mais a quem perseguir, o padre mete Santa Luzia na Política!... Quanto mais se precisava de reza, ele manda fechar a igreja. E ainda tem quem fale de uns ateus de maia-cara que andam por ai.“

Daí por diante, a festa tem acontecido todos os anos, numa constante renovação de fé, onde, como diz o jargão, “o povo com alegria, saúda Santa Luzia”!


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Autor:
Jornalista Geraldo Maia do Nascimento

Fonte:
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HOMENAGENS, EXCESSOS E CINZAS



Por Rangel Alves da Costa* 

Que os políticos ainda vivos e vaidosos não passem dessa para melhor - ou... - achando que talvez sejam reconhecidos com seus nomes em prédios públicos, logradouros ou quaisquer outros espaços na capital e municípios sergipanos.

O estado de Sergipe é pequeno demais para tantas homenagens, principalmente quando tudo agora é lembrado para ter o nome Governador Marcelo Déda, falecido na madrugada do primeiro dia de dezembro.
Justíssima homenagem, pois além de governador e ex-prefeito de Aracaju, Déda foi um político projetado nacionalmente através de sua atuação na câmara federal e pela sua prestigiada verve oratória. Mas principalmente por tido sido alguém que solidificou uma forte liderança em meio ao conservadorismo reinante desde muito no estado.

Num excesso de comoção, e logicamente com excessiva hipocrisia por parte daqueles que ainda seguram na mão do morto na tentativa de colher frutos eleitorais, agora não se fala em outra coisa senão colocar o seu nome em todo lugar. Naquilo que já possui homenageado e no que será inaugurado ou ainda construído.

Ao menos é isso que pretendem. Pelo que a imprensa noticia e se ouve de boca em boca, nada menos que quatro obras, somente em Aracaju, são lembradas para ter o nome do governador.

Já está decidido que o Viaduto do Detran será Governador Marcelo Déda, do mesmo modo o viaduto (“Mergulhão”) construído pelo prefeitura de Aracaju na Av. Tancredo Neves e o futuro Hospital do Câncer. Já o deputado Márcio Macedo apresentou Projeto de Lei alterando o nome do Aeroporto Santa Maria para Aeroporto Internacional Governador Marcelo Déda Chagas.

E os demais municípios sergipanos certamente prestarão muitas outras homenagens. Fóruns, avenidas, prédios públicos e muitas outras obras serão inauguradas com o nome do saudoso governante. E ouvi de um militante petista que se pudesse mudaria o nome do estado. Deixaria de ser Sergipe para ganhar outro nome. Adivinha qual?

Não sei, mas algo me diz que as cinzas do governador - pois o mesmo ainda em vida desejou que fosse cremado - provocarão exaltações onde sejam espalhadas. Dizem que uma parte será jogada nas águas litorâneas de Sergipe, outra ficará em poder da família e ainda outra será mantida no Parque da Sementeira, numa pequena capela ao lado de uma árvore plantada pelo próprio Déda e sua esposa.

Acaso assim aconteça, desnecessário será colocar seu nome até mesmo no mais suntuoso palácio, eis que a igrejinha da Sementeira certamente se tornará num local de adoração, culto e peregrinação. E adorado e cultuado pelo desejo e reconhecimento de expressiva parcela da população, que um dia tenha sido ou não seu eleitor, e não pela hipocrisia interesseira de determinados políticos.

Creio, contudo, que o culto maior deve ir além das cinzas para se eternizar no seu grandioso legado. Como homem comum, Déda também tinha defeitos. Era vaidoso e egocêntrico, individualista e autoritário. Mas também cativante e carismático; construtor de uma nova identidade na política sergipana.

E o grandioso legado está precisamente na sua primorosa arte de transformar a política num diálogo de possibilidades, onde os diversos interlocutores acabavam sempre confluindo para o que fosse do interesse maior para o progresso e desenvolvimento de Sergipe.

Essa incansável luta pela evolução desenvolvimentista de Sergipe só não foi maior que a sua luta pela própria sobrevivência. Não ganhou todas, mas Sergipe sempre saiu vitorioso nas suas batalhas.

Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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Bangu, Memória de um Militante - Lauro Reginaldo da Rocha - Bangu - Parte VIII

Por Brasília Carlos Ferreira – Organizadora, 1992
Lauro Reginaldo da Rocha era Mossoroense
 
“SÉTIMO DIA”

Nos momentos de crise eu achava que tudo ia acabar. Caía no desânimo e chegava a desejar que a morte viesse o quanto antes para por termo ao martírio. Depois vinha a reação. Pensava nas coisas bela da vida, no lar, nos filhos, no despontar de um dia radiante, o sol iluminando campos verdejantes, imaginava multidões desfilando, felizes, na grande festa da vitória. E voltava aquela esperança de que eu tornaria ao mundo dos vivos. E o organismo reagia, parecia readquirir as forças perdidas, eu lutava para viver.

A descarga do mictório mais uma vez rouba-me o devaneio. A sede faz-me delirar. Imaginei todos os meios de fazer chegar aos lábios ao menos umas gotas d’água. No banheiro não há pias nem torneiras. A descarga do mictório espalha a água no azulejo, não há meio de apará-la com as mãos. Além do mais, quando vou á privada, um “tira” me acompanha a dois palmos de distância.

Morrer de sede vendo a água se derramar aos meus pés tem qualquer coisa de diabólico. Sou acometido de súbitos e estranhos desejos como o de rolar pelo chão, rir, gargalhar, mas ainda tenho forças para reprimir os desvairados impulsos. E começava a pensar, com essa capacidade de auto-domínio, se eu vier a ficar louco, certamente serei do tipo calmo, silencioso. Terá isso algum sentido, alguma lógica?

Tive de repente uma idéia. Eu poderia aproveitar minha própria urina para matar a sede. Eu estranhava o fato de ainda ser possível urinar não sabia donde vinha aquele líquido avermelhado, se eu há sete dias não bebia nem comia. Era o processo de desidratação, concluí depois.

A urina era pouca e eu passe a retê-la, por economia, aguardando um momento de descuido do “vigia” para apará-la com a mão e beber. Esse momento chegou, afinal. O investigador afastou-se por um minuto, eu enchi a mão e bebi em rápidos goles. O líquido quente e salobro deixou um gosto esquisito na boca.

Por alguns instantes aquele latejar insuportável no estômago diminuiu. A sede porém não passou. Ao contrário exacerbou-se. A obsessão pela água continuou a me atazanar o juízo.

O efeito calmante da urina quente no estômago foi passando, as batidas enjoadas voltaram. Agora eu tinha que esperar o líquido juntar na bexiga e o investigador se descuidar. Esse descuido era hipotético. Eu fazia um esforço para definir meus atos, queria saber se estava agindo como uma pessoa sã ou se já estava fora do meu juízo. E chegava à conclusão de que minhas reações eram normais, eu não podia agir de outra maneira.

Era impossível continuar com aquela sede, eu tinha que beber água de qualquer maneira. Do mictório era impossível. Restava o vaso da privada. Sim no vaso da privada estava a solução. Eu tinha noção exata dos riscos que ia correr. Certamente não ia escapar de uma infecção. Isto demonstra que meu raciocínio ainda regula, pensava eu. Mas, não importa o que virá depois. Qualquer morte é preferível à morrer de sede. Resta agora aguardar uma oportunidade, esperar um descuido do investigador.

Direi ao “tira” que preciso ir à privada, ele me acompanhará e se colocará a dois passos de distância, mas haverá um momento em que ele dera as costas e eu aproveitar esse momento. Não sei porque não tive essa idéia antes. Nojo? Nessas alturas, quem sou eu prá ter nojo, se estou a um passo da cova, onde serei devorado pelos vermes? Foi assim que aquela idéia repugnante nasceu e se robusteceu na minha cachola. Só restava o momento de pô-la em prática.

O investigador que veio render ao que estava de vigia, fez esta revelação surpreendente: “Hoje não vai ter sessão de esculacho, é Sexta-Feira da Paixão”.

Trocando em miúdos, isto queria dizer que a sala de torturas não ia funcionar nesse dia, em sinal de respeito a crucificação de Jesus Cristo. O cúmulo da hipocrisia!

Imaginei o Cegadas ajoelhado aos pés de um padre confessando os seus pecados, dizendo que torturou crianças, que colocou uma dessas crianças de 4 anos de idade, junto com o pai e a mãe – todos completamente nus – num corredor quadrado, arrancando-lhe as unhas e praticando as mais torpes sevicias. E o padre, naturalmente surpreendido e horrorizado com a revelação, ficaria hesitante por não dispor de meios nem de autoridade para punir tão nefando crime. E acabaria dando alguns conselhos ao monstro recomendando-lhe, como penitência, rezar alguns padre-nossos e ave-Marias...

Que me perdoem os católicos. Não quero ser irreverente. Quero apenas ser fiel ao meu relato e dizer como funcionava o meu raciocínio, naquelas circunstâncias.


CONTINUA...



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