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domingo, 1 de dezembro de 2013

Benjamim, Lampião e Maria Bonita


Esta foto mostra o cineasta Benjamim Abraão Botto talvez entrevistando o casal de cangaceiros Lampião e Maria Bonita. O local onde foi feita esta foto eu não tenho conhecimento, mas poderá ter sido aproveitada das filmagens que fez o cineasta com o bandido Lampião.


Souvenirs 

Benjamin conta uma mentira que se espalha rapidamente pelo sertão: diz que Padre Cícero iria dar a última bênção naquele ano de 1929. É lógico que Juazeiro se enche de romeiros a ponto de o delegado dizer que tinha perdido o controle da cidade, de tanta gente que aparecia por ali. Benjamin, então, enche os bolsos com as vendas de seus souvenirs. A mentira é descoberta, mas Padre Cícero já gostava tanto do sírio que o perdoa e tira uma foto para abafar os fuxicos de que os dois iriam se “separar”.

 
Padre Cícero e Benjamim Abraão

Para provar que não estava bravo depois de uma das mentiras de Benjamin, Padre Cícero tira uma foto com o sírio, que posiciona sua mão perto do cangote do sacerdote para se dizer íntimo. E segura o jornal O Globo para demonstrar inte­lectuali­dade e fazer propa­ganda

CABELOS DO PADRE CÍCERO 

Quando Padre Cícero morre, Benjamin corta uma mexa do cabelo do religioso e começa a vender os fios aos fiéis. Até que alguém se dá conta de que o sacerdote não tinha tanto cabelo assim, e que, da mesma forma, o sírio já deveria ter vendido mais de 10 quilos de cachos. Foi a partir daí que ele começou a ganhar inimigos na cidade.

BENJAMIM ABRAÃO
 
Benjamin Abraão Botto nasceu em Zahlé, Líbano, no ano de  1890 e  morreu em   Serra Talhada, no dia 10 de Maio de 1938, dois meses antes da morte de Lampião. Foi  um fotógrafo sírio-libanês-brasileiro, responsável pelo registro iconográfico do cangaço e de seu maior líder, Virgulino Ferreira da Silva, o renomado rei  do cangaço, o Lampião.  

Segundo informações dos pesquisadores, Benjamin Abraão Botto foi assassinado durante o Estado Novo. Morreu esfaqueado (com quarenta e duas facadas), sem que o crime jamais viesse a ser esclarecido, tanto na autoria como na motivação, donde se especula ter sido mais uma das mortes arquitetadas pelo sistema, como outras ocorridas em situação análoga, a exemplo de Horácio de Matos (embora exista a versão de que o fotógrafo sírio-libanês teria sido alvo de roubo, por algum ladrão, apesar de com este nada de valor haver.

CRÍTICA HSTÓRICA

A historiadora francesa Élise Jasmin (n. 1966), que realizou uma mostra em França das imagens do Cangaço por Abraão Botto, fruto de seus trabalhos de pesquisa, declarou em entrevista que "Estas imagens dos bandidos no auge de sua glória e poder, ao lado das fotos com o jogo cênico de suas mortes, fazem parte desta espetacularização da violência que encontramos nas sociedades modernas (…)" - e aludindo que havia por trás do trabalho de Abraão uma intenção por parte do cangaceiro em "…desafiar seus adversários, impor seu poder e mostrar que seu sistema de valores, a vida que levavam, tinha um sentido para eles." - fato refutado por Urariano Mota, para quem "As lentes de Benjamin Abraão, que os filmou, é que fazem o espetacular".  A constatação original da pesquisadora francesa, entretanto, persiste, sobre o uso da imagem feita por Lampião: "foi o primeiro cangaceiro a cuidar de sua imagem, e aí reside sua grande originalidade. Teatralizou sua vida, utilizou modos de comunicação da modernidade que não faziam parte de sua cultura original, principalmente a imprensa e a fotografia"

Fontes:

http://xiquexiquense.blogspot.com.br/2013/02/cangaceiros-lampiao-e-maria-bonita_28.html
http://www.gazetadopovo.com.br/vidaecidadania/conteudo.phtml?id=1328069

http://pt.wikipedia.org/wiki/Benjamin_Abrah%C3%A3o_Botto

http://blogdomendesemendes.blogspot.com

Os Movimentos Messiânicos

 Seguidores do beato Antônio Conselheiro presos pelas tropas do Exército, no Arraial de Belo Monte, em Canudos (foto JB)

Na segunda metade do século XIX cada vez mais pessoas pobres passaram a seguir lideres religiosos em movimentos messiânicos, chamados preconceituosamente pelas elites, cúpula do Estado e pela igreja, de fanáticos. Tidos como uma ameaça real à ordem estabelecida, logo vieram as perseguições e massacres.

Misturando interpretações da Bíblia, tradições cristãs como o fim dos tempos e criação do paraíso, com mitos a exemplo do retorno de D. Sebastião, tais movimentos representavam, paradoxalmente, não uma fuga da realidade, mas uma crítica implícita, silenciosa, á estrutura socioeconômica vigente. Apegava-se aos céus porque a vida terrena era de sofrimento. O povo se voltava para a religião implorando dádivas e perdão dos seus pecados, os quais supunham serem os causadores do martírio que sofria, esperando a criação de um tempo novo, de paz, de prosperidade e de justiça, onde os pobres seriam abençoados e os ricos e perversos, castigados.

  Ruínas da comunidade de Canudos, liderada por Antônio Conselheiro
 
Por essa época, o catolicismo praticado na maior parte do Nordeste, era produto de profundo sincretismo, decorrente da fusão do catolicismo português com as tradições indígenas e africanas. A esse catolicismo mestiço, diferente do praticado pelas altas hierarquias eclesiásticas, os historiadores chamaram de catolicismo popular. É uma espiritualidade repleta de benzedores, curandeiros, rezadeiras, milagreiros, crenças em talismãs, fórmulas mágicas, sacrifícios, penitências e coisas semelhantes.

Seguidores do beato José Lourenço, no Sítio Caldeirão

No mundo profundamente místico sertanejo, escasseavam sacerdotes. Para se ter ideia, no início da década de 1860, para uma população de 720 mil habitantes, possuía o Ceará apenas 33 padres, dos quais mais de dois terços, tinham família constituída e cujo prestígio entre os fiéis era baixíssimo. 

A falta de padres e o isolamento dos sertões faziam com que pessoas que se destacassem em suas comunidades, por conhecimento e piedade, rotineiramente se ocupassem das práticas religiosas mais comuns – pregar, batizar, rezar, encomendar os mortos. Algumas vezes esse verdadeiro clero laico chegou a celebrar arremedos de missas. Esse fenômeno foi comum no interior do Nordeste e mesmo no Sul. Nos sertões, esse clero laico tinha até uma hierarquia informal. Os beatos tiravam rezas, puxavam o terço, cantavam ladainhas, esmolavam para as igrejas; os mais informados e inseridos nas coisas sagradas eram conselheiros, os quais pregavam e aconselhavam os fiéis. Na maioria das vezes, os conselheiros possuíam sob sua influência um ou mais beatos.

 beato José Lourenço (centro) foto do blog Lampião Aceso

As pessoas de fé não eram tratadas como exóticas ou loucas pelos populares. Ao contrário, constituíam-se figuras comuns nas comunidades, com funções e atribuições aceitas e delimitadas. Assim, os sertões eram trilhados por dezenas de andarilhos que visitavam as localidades desprovidas de párocos e mesmo aquelas que os tinham. Por longo tempo houve um contato semioficial do clero com aquelas lideranças religiosas leigas. Sacerdotes cediam os púlpitos para beatos e conselheiros e alguns chegavam a incentivar tais formas de vida.

Esses homens e mulheres de Deus participavam da orientação social, política e ideológica do povo sofrido do interior nordestino. Traziam-lhe conforto espiritual e mesmo ajuda material. 

 Padre Cícero, o maior lider religioso que o Nordeste conheceu

Alguns desses lideres messiânicos eram extremamente carismáticos, apresentavam atributos extraordinários e sobrenaturais, e eram tidos como profetas ou portadores de uma nova mensagem de esperança e de um mundo melhor. Com esses atributos, fica fácil entender o que levava milhares de pessoas a ouvir e seguir líderes como Antônio Conselheiro, beato José Lourenço e mesmo integrantes da hierarquia católica que adotavam aquelas práticas de catolicismo popular, como Padre Cícero, Padre Ibiapina. 

O Lendário Rei D. Sebastião, o Desejado

Dom Sebastião I de Portugal, nasceu em Lisboa, em 20 de Janeiro de 1554 e faleceu na batalha de Alcácer-Quibir em  4 de Agosto de 1578, com apenas 24 anos de idade. Foi o décimo sexto rei de Portugal, cognominado O Desejado por ser o herdeiro esperado da Dinastia de Avis, mais tarde nomeado O Adormecido. Foi o sétimo rei da Dinastia de Avis, neto do rei João III de quem herdou o trono com apenas três anos. A regência foi assegurada pela sua avó Catarina da Áustria e pelo Cardeal Henrique de Évora.

Aos 14 anos assumiu a governação manifestando grande fervor religioso e militar. Solicitado a cessar as ameaças às costas portuguesas e motivado a reviver as glórias do passado, decidiu a montar um esforço militar em Marrocos, planejando uma cruzada após Mulei Mohammed ter solicitado a sua ajuda para recuperar o trono.

A derrota portuguesa na batalha de Alcácer-Quibir em 1578 levou ao desaparecimento de D. Sebastião em combate e da nata da nobreza, iniciando a crise dinástica de 1580 que levou à perda da independência para a dinastia Filipina e ao nascimento do mito do Sebastianismo.

D. Sebastião morreu na batalha de Alcácer-Quibir ou foi morto depois desta terminar. É provável que seu corpo tenha sido enterrado logo depois, em Ceuta, mas para o povo português, o rei havia apenas desaparecido.  Tornou-se então numa lenda do grande patriota português - o "rei dormente" (ou um Messias) que iria regressar para ajudar Portugal nas suas horas mais sombrias.

Já em fins do século XIX, no sertão da Bahia, no Brasil, camponeses acreditavam que o rei D. Sebastião, iria regressar para ajudá-los na luta contra a "república ateia brasileira", durante a Guerra de Canudos. O mesmo repetiu-se no sul do Brasil, no episódio da Guerra do Contestado. 

(Não esquecer que Antônio Conselheiro era homem culto e monarquista e provavelmente, foi através dele, que os camponeses passaram a cultuar a lenda de D. Sebastião) 

Fonte:

História do Ceará, de Aírton de Farias

wikipédia
http://cearaemfotos.blogspot.com.br/
http://blogdomendesemendes.blogspot.com

Lampião: o Capitão do sertão! - Cap II

Por A. Fleming

Extraído do GEH - Grupo de Estudos Humanus 
A origem do cangaço ? (1870-1940)

Naquela época, as condições sociais do sertão nordestino podem ser sintetizadas em duas palavras: atraso e abandono. Nem escolas, nem estradas, nem médicos e postos de saúde, nenhuma assistência agrícola... (E até os dias atuais é de pasmar a desigualdade social que ali impera, a falta de trabalho, de justiça, de amparo, de humanidade). Mundo regido pelo absolutismo do grande fazendeiro mandão e político, promovido naturalmente a "Coronel", teúdo e manteúdo pela força dos cabras e pelo reforço da fiadora de seu prestígio político ? a polícia. Essa última, aliás, o único sinal de Governo naquelas brenhas!

A organização econômica do sertão se apresentava (e ainda hoje se apresenta) como latifundiária em relação à forma de apropriação do solo, e de servidão quanto ao regime de trabalho. Há muitas terras improdutivas - de forma total ou parcial - por causa da própria natureza do solo. O sistema de trabalho ainda não se liberou de todo das condições, próprias ou equivalentes, do servilismo, etapa de evolução entre a escravidão de outrora e o regime salarial de hoje, convencionado por Lei. Trabalho servil, mediante a paga ínfima arbitrada pelo patrão, cujo miserável padrão de vida e pauperismo intriga o observador mais cediço, obrigando-o a perguntar: "Como é mesmo que essa gente consegue sobreviver?!".

Casa da família de Lampião no Poço Negro, Floresta, Pernambuco, erguida em 1917

A política do sertão possui suas peculiaridades. Em primeiro lugar, uma política de clã. Os municípios interioranos do sertão, naqueles tempos muito pequenos, chegando os maiores a ter cerca de mil habitantes, formavam, como ainda muitos deles hoje em dia, uma só família, de parentes e aderentes, ligados pelos laços de consangüinidade, afinidade, compadrio ou do espírito clânico. Por isso, as divisões político-partidárias, com suas inevitáveis futricas e hostilidades, viravam questões de família.

Fechada hermeticamente na sua organização partidária, açulada pelas paixões inflamadas, a filosofia do "machismo" revelava-se no chefão mandão ou no cabra macho (cabra da peste): valente só ele!

As fazendas não possuíam cercas, mas apenas fronteiras naturais bastante imprecisas. O gado, identificado apenas por uma marca a ferro, constantemente invadia terras estranhas, sendo necessário recuperá-lo, quando não era simplesmente roubado pelos vizinhos e bandos de assaltantes. Além desses problemas, havia a disputa entre asparentelas pelos melhores pastos e fontes de água numa região constantemente assolada pelas secas. Não raro, também, a agressão ou perseguição movida por um vizinho a um agregado ou parente do senhor obrigava-o, por razões morais, a mobilizar toda a parentela em defesa da honra do ofendido. Outra fonte de conflitos, bastante comum, eram as questões de herança, as disputas amorosas e outras mais por qualquer nada. Em suma, a violência estava inscrita no cotidiano dessa gente.

Lampião , Moderno, Zé Baiano e Arvoredo, sentados; Mariano, Ponto-Fino,, Calais, Fortaleza, Mourão e Volta-Seca. Fazenda Fazenda Jaramataia, - Gararu, Sergipe, 27 de novembro de 1929.

A luta pela manutenção da ordem entre os domínios dos senhores constitui um dos traços definidores da sociedade sertaneja. Toda a sua história, aliás, está marcada pelo que os sociólogos chamam de lutas de família, guerras de clãs ou vendetas. Nestas lutas de família, a autoridade dos coronéis fundava-se basicamente na capacidade de fazer cumprir suas decisões e impô-las, ainda que pela força, às demais facções ou parentelas. Tratava-se, portanto, de um poder emanado da força militar, da capacidade de manter um determinado número de homens em armas, mobilizados dentre a sua clientela.

Tal situação resultava frequentemente na formação de bandos armados, em especial quando o coronel que a liderava contava com o apoio do governo e, por isso, conseguia mobilizar mais gente e gozar de impunidade perante o poder. Elas, além dos parentes, reuniam dois tipos de elementos: em primeiro lugar, o jagunço, uma espécie de guarda-costas do senhor que, em geral, era um trabalhador com antecedentes criminais ou um pistoleiro profissional e que vivia sob a proteção do coronel em troca de serviços de natureza militar; em segundo lugar, o já citado cabra ou cangaceiro manso, um morador comum, que trabalhava na terra ou na lida com o gado, cujo contrato de trabalho implicava na defesa incondicional do senhor. Sendo assim, as causas determinantes do cangaço são duas: o coronelismo e a falta de justiça. O coronelismo, forma de oligarquia política rural, acabou estabelecendo, diante da falta de polícia na região, suas próprias milícias por meio do aliciamento dos cabras, facínoras para defesa de suas fazendas e garantia de seu prestígio político. Intitulado o chefão territorial de "coronel" por autopromoção ou por adulação de seus vassalos, fazia de sua vontade a própria "lei", visto que tinha a cobertura da política, o que equivale a dizer que contava com proteção judicial e policial.

Em decorrência disso, proliferavam as injustiças: o crime impune e a perseguição irreversível. E reagindo contra essa total carência de justiça tanto nas questões de terra como no trato dispensado ao trabalhador rural, tanto nas desonras de família como nos desvirginamentos de donzelas, tanto nas desfeitas como nos homicídios, surgiram oscangaceiros-heróis à frente de todas as esperanças perdidas. E, não só como um desesperado oprimido, mas na tentativa de mudar esse estado de coisas, surgiu Lampião! 

"Que não se julgue feliz
O que vive em bom estado,
Que vem a naufragação
E acaba em mau resultado".

 Lampião

Fontes: 
http://www.geh.com.br/forum/viewtopic.php?f=62&t=6333 
http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2010/12/482270.shtml?comment=on


http://blogdomendesemendes.blogspot.com

Bangu, Memória de um Militante - Lauro Reginaldo da Rocha - Bangu - Parte V

Por Brasília Carlos Ferreira – Organizadora, 1992 


“QUARTO DIA”

Os novos métodos de tortura que a polícia estava pondo em prática eram considerados por ela própria como científicos. Os algozes recebiam ordens para evitar lesões físicas ou aleijões que pudessem, mais tarde, “dar na vista” e produzir provas “visuais” irretorquíveis nas vítimas. Só que esses métodos freqüentemente falharam. E quando um ficava louco, quanto outro punha termo à vida ou quando um terceiro – num gesto instintivo – tentava a fuga ou resistia à prisão era alvejado impiedosamente pelas costas, a “ciência” dos métodos tornava-se uma irrisão. E tais “falhas” eram consideradas apenas como acidentes lamentáveis mas, sem importância. 

Dentro dessa orientação “científica”, havia um médico acompanhando os trabalhos, com a missão de avaliar a nossa resistência física ou fazer soerguer as forças a um corpo que baqueasse. O médico que nos assistia – o doutor Mariozinho – era um sujeito pequenino, franzino. Ele veio me examinar. Olhou-me pegou no meu pulso, auscultou. E concluiu que meu estado físico era excelente, que eu era uma resistência fora do comum.  

Esse elogio, noutra oportunidade, muito me teria desvanecido. Mas naquela ocasião, ele queria dizer que eu estava em condições de suportar as torturas e que estas podiam continuar sem perigo.  

Eu sempre tive um grande respeito a admiração aos médicos, sempre achei nobre o honroso e seu mister de salvar vidas e diminuir os sofrimentos da humanidade. Mas ali estava um empenhado justamente ao contrário, em prolongar os padecimento de seus clientes. E essa era mais uma estranha revelação da “caixa de surpresas” da Polícia fascista do “Estado Novo”.  

Enquanto o clínico me examinava, o meu raciocínio divagava. Esse médico consegue entrar com facilidade em nosso organismo, vai ao coração, aos pulmões, pode vasculhar tudo por dentro. Mas há um ponto onde ele não conseguirá penetrar: no nosso pensamento. Isto porque, se ele conseguisse adivinhar o que estou pensando a seu respeito, na certa eu levaria agora mesmo, mais um bofetão ou um pontapé.  

O doutor foi embora mais sua visita agravou o meu estado de nervos. As esperanças de que as torturas pudessem ter um fim próximo se desvaneceram. Agora eu já sabia que as torturas iam continuar por muitos dias, pois o médico não acabara de concluir que o meu estado físico era excelente?  

Tive a impressão de que o peso na nuca aumentara vários quilos, a cabeça parecia estourar.  

A descarga do mictório continuou a funcionar ininterruptamente, o ruído da cascata enchia os meus ouvidos. A fome ia diminuindo – ela só me atormentou até o terceiro dia – enquanto que a sede ia aumentando. Tinha vontade de gritar água! água! mas me contive. Eu não devia dar demonstração de fraqueza e de desespero. Continuei de pé no canto da parede, oscilando, me firmando ora num pé, ora noutro, eu tinha que jogar o peso do corpo numa perna enquanto a outra descansava. Procurei me distrair espremendo as unhas, dedo por dedo, fazendo sair um pus fedorento, que estava sempre se renovando.  

Senti um estremecimento quando ouvi os primeiros passos no “quadrado”. Era a turma de espancadores que chegava com as novas vítimas. A sinfonia dantesca enche o ar. É uma repetição dos mesmos palavrões, gargalhadas e gemidos. 

A mistura das gargalhadas com os gemidos me causa uma estranha sensação, a inconseqüência dos sons me desconserta. Naquelas circunstâncias, a manifestação simultânea dos dois sentimentos diametralmente opostos – a dor e o prazer – era mais uma revelação da “caixa de surpresas”, eu jamais vira ou imaginara coisa igual.  

Depois que cessaram aqueles gritos, chegou a minha vez. Naquela noite, com o diagnostico do médico declarando que eu ainda estava em bom estado físico, os tarados caíram sobre mim com verdadeira volúpia. Um torcia um braço, outro torcia um dedo, outro apertava a garganta, pareciam urubus na carniça. Quando eu arquejava e as pernas cambaleavam, eles suspendiam as operações. Depois que eu reanimava, eles recomeçavam, procurando sempre os pontos mais sensíveis, as articulações, os órgãos genitais, os pulmões e o coração.  

A imaginação criadora dos verdugos é fértil. Eles estão sempre a descobrir pontos vulneráveis no organismo e a cada descoberta exultam como se tivessem descoberto um tesouro. Isto aconteceu quando eles descobriram um calo, muito sensível, no meu pé. Com um cabo de vassoura passaram o resto da noite a bater sobre o calo. É impossível descrever o que senti. Dessas pancadas originou-se um tumor entre os dedos, o pé inchou, ficou redondo como uma bola.  

CONTINUA...  

http://www.dhnet.org.br/memoria/1935/livros/bangu/04.htm#primeiro



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