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quinta-feira, 20 de setembro de 2012

Serra Grande e o Governador do Sertão

Lampião em foto de 1926 em Juazeiro do Norte

O mês era novembro, o ano 1926, Lampião contava com perto de 90 cangaceiros em seu bando. Homiziado na Serra Grande, cerca de 25 km de Vila Bela, mantinha preso sob resgate de 16 contos de réis, o representante comercial da multinacional Standard Oil, Pedro Paulo Mineiro Dias.

No dia 27 daquele mês, depois de quase 15 dias de perseguição as volantes localizam o bando e irrompe violento combate entre o grupo cangaceiro e as volantes sob o comando geral de Teófanes Torres Feraz, e em campo comandadas por Manuel Neto, Arlindo Rocha e Higino Belarmino, mobilizadas para resgatar Mineiro Dias, ao todo eram cerca de 295 volantes contra perto de 90 cabras dos grupos cangaceiros.

O combate da Serra Grande teria se configurado como um dos maiores da história do cangaço. A luta que iniciou perto das oito da manhã se seguiu até o final do dia com um resultado desastroso para as tropas volantes, preponderantemente pela vantagem inegável do posicionamento estratégico dos bandidos em cima da serra; uma garganta de quase duas léguas de extensão; enquanto as volantes subiam quase de peito aberto de encontro ao ataque cangaceiro. Pela primeira vez na guerra contra os cangaceiros, estavam sendo usadas metralhadoras, no caso, duas hot Kiss. Primeiro chegaram as forças de Manuel Neto e Arlindo Rocha, aguardavam a chegada de Higino Belarmino para entrarem juntos na garganta da Serra Grande, segundo Marilourdes Ferraz em seu livro O Canto do Acauã, “tornava-se difícil traçar um plano com segurança relativa para os soldados. A serra, muito acidentada, era um local adequado para emboscadas”, o que com certeza veio a ser fatal para as forças volantes. O grupo cangaceiro estrategicamente localizado estava dividido em três frentes, aguardando a chegada dos soldados, que se organizavam; para o enfrentamento, entretanto as forças policiais não conseguiam se entender sob que plano executar para o embate vital, Higino havia traçado um plano exeqüível no que foi rejeitado por Arlindo Rocha, ao final Higino acabou ordenando o ataque que foi relato por Marilourdes Ferraz como segue: “Belarmino desistiu do ataque coordenado, puxou o relógio do bolso e disse que, quem fosse homem, subisse a serra.
 Escapasse quem Deus quisesse. E acrescentou São sete e quarenta e cinco. Fico aqui escutando a hora que a espoleta quebra em cima da serra”. E recorrendo a João Gomes de Lira relatamos a resposta dos outros comandantes da volante: “ Manuel Neto - venho de longe, com mais de 30 léguas, no encalço, para brigar, e quero é brigar. Já estou com o pé na embocadura da serra. Já vou subindo.” Já O anspeçada Euclides de Souza Ferraz também falou: - “Com meu pelotão da morte, também vou subindo a grande serra.” E o sargento Arlindo Rocha “Ah! Tá bom! Eu hoje também quero é almoçar bala!” Vendo Arlindo se adiantar, querendo tomar sua frente, Manuel Neto protestou:- “Não, Arlindo. Você sabe que a vanguarda é minha e não cedo o lugar.”

Manoel Neto

O combate se deu violento em todas as suas frentes, Antônio Ferreira combatia ora na vanguarda e ora na retaguarda do soldados, Higino por sua vez impediu que os bandidos fechassem a saída da garganta da serra impedindo um verdadeiro massacre. Nesse momento Manuel Neto teria sido atingido por vários balaços que cortaram as pernas e ali Lampião teria gritado: “Perdeu a fama hoje, cachorro azedo”. Perdendo as forças Manuel Neto conseguiu escapar da morte rolando serra a baixo sob a cobertura dos primos Antônio Capistrano e Euclides Flor e ainda do soldado Raimundo Barbosa, naquele momento a chuva de balas era enorme e as volantes em maior número de membros era fragorosamente derrotada sendo obrigada a abandonar suas posições de combate. O sargento Arlindo Rocha levou um disparo na boca que quase lhe destruiu a mandíbula, O curioso é que ele havia dito, antes de enfrentar os bandidos, que naquele dia "ia comer bala". Diante de um revés jamais imaginado os comandantes das forças volantes ordenaram a retirada imediata dos soldados, passavam das cinco da tarde e acabava ali um dos maiores combates da história do cangaço em Pernambuco.

Antonio Ferreira, irmão de Lampião ficou ferido de leve e Corisco abandonou temporariamente o cangaço após esse combate. Pelo lado das forças policiais dez soldados morreram e perto de 30 ficaram feridos. Já entre os cangaceiros, somente alguns feridos. O consolo para as forças volantes após o desastroso combate foi alimentar nos sertões o boato mentiroso da morte do irmão mais velho de Lampião, Antônio Ferreira, fato que só veria a acontecer em Janeiro de 1927 em um “sucesso” envolvendo o cangaceiro Luiz Pedro na fazenda Poço do Ferro em Floresta.

Higino Belarmino, Nêgo Gino, em foto de 1973

Após a memorável vitória sobre seus mais aguerridos perseguidores, Lampião se retira para a Fazenda do coronel Ângelo Gomes, o “Anjo da Gia”, ali urdiu um dos mais pitorescos episódios da história do cangaceira. O Rei do Cangaço mandaria uma ousada carta à maior autoridade do estado de Pernambuco. Ditada por Virgulino foi datilografada pelo próprio Mineiro Dias, na máquina de escrever portátil do mesmo que a colocou em um envelope branco com o ilustre destinatário: "Ex° governador de Pernambuco", o próprio seria o portador daquele importante documento escrito...

Lampião, O Governador do Sertão.

O então chefe de polícia Antônio Guimarães acabara levando a atrevida e ousada correspondência do audacioso Virgulino Ferreira para o Governador de Pernambuco Júlio de Melo. Na missiva o líder cangaceiro propõe à autoridade governamental a divisão do estado de Pernambuco em dois, sendo o próprio se auto-proclamado: Lampião – o Governador do Sertão. A referida carta havia chegado às mãos de Guimarães pelo próprio representante da Standard Oil, Mineiro Dias, solto sem pagamento de resgate, após o combate de Serra Grande. A divisão proposta por Virgulino, dividia o estado em dois: Lampião governaria o trecho de Rio Branco; atual Arcoverde; até o sertão e o governador: de Rio Branco até "onde bate a pancada do mar", a capital Recife. Àquela época em Rio Branco terminava a linha férrea da Great Western and Brazil Railway. O fato é que os jornais de então em muito contribuíram para o atrevimento, uma vez que estampavam quase que diariamente o título ao bandido, em função de suas incursões quase que impunes pelos sertões pernambucanos ao longo daqueles anos.

O governador Júlio de Melo teve poucos dias para se ocupar do desaforo, já no dia 12 de dezembro assume o governo, Estácio Coimbra que ato contínuo faz a nomeação para a chefia de polícia um jovem advogado, filho de uma família aristocrática da Zona da Mata, Eurico de Souza Leão, que teria a responsabilidade de responder à altura tamanha ousadia daquele que buscava desmoralizar as forças do estado. Começava ali uma urdida e bem engrenada campanha em Pernambuco para acabar com banditismo de Virgulino Ferreira.

CARTA DE UM GOVERNADOR PARA O OUTRO

Senhor governador de Pernambuco,

Suas saudações com os seus.

Faço-lhe esta devido a uma proposta que desejo fazer ao senhor para evitar guerra no sertão e acabar de vez com as brigas. (...) Se o senhor estiver no acordo, devemos dividir os nossos territórios. Eu que sou capitão Virgulino Ferreira Lampião, Governador do Sertão, fico governando esta zona de cá por inteiro, até as pontas dos trilhos em Rio Branco. E o senhor, do seu lado, governa do Rio Branco até a pancada do mar no Recife. Isso mesmo. Fica cada um no que é seu. Pois então é o que convém. Assim ficamos os dois em paz, nem o senhor manda seus macacos me emboscar, nem eu com os meninos atravessamos a extrema, cada um governando o que é seu sem haver questão. Faço esta por amor à Paz que eu tenho e para que não se diga que sou bandido, que não mereço. Aguardo a sua resposta e confio sempre.

Capitão Virgulino Ferreira Lampião, Governador do Sertão.

Consultas: Floresta uma Terra - um Povo; Leonardo Ferraz Gominho, Canto do Acauã; Marilurdes Ferraz e as Memórias do Grande João Gomes de Lira.

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Lampião contra o mata sete


Autor: Archimedes Marques

Preço: R$ 50,00
BANCO DO BRASIL
Agência: 3088-0
Conta: 33384.0

Em nome de Elane Lima
Marques (Minha esposa).
E-mail
archimedes-marques@bol.com.br

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A morte do cangaceiro Jararaca



Em torno da morte do famoso cangaceiro Jararaca, tiveram curso várias versões curiosas, uma das quais foi recolhida por Leonardo Mota, o brilhante folclorista cearense, no interior do Rio Grande do Norte. 

Seguindo essa versão, Jararaca fora barbaramente assassinado por 

soldados da policia potiguar, depois de haver sido conduzido da Cadeia Pública ao cemitério de Mossoró, aonde tê-lo-iam obrigado a cavar a própria sepultura. Para não desfigurar o cunho pitoresco do episódio, preferimos transcrevê-lo como narra o apreciador sertanista.


Quando Lampião teve a certeza de que atravessaria livremente todo o Ceará, em cujo território já por vezes penetrara, erguendo vivas ao então Presidente do Estado, decidiu invadir o Rio Grande do Norte, para atacar a cidade de Mossoró. Seduziam-se os pingues recursos desse empório comercial servido por uma agência do Banco do Brasil. Saiu-lhe porém, o ano bissexto. 


A população de Mossoró, tendo a frente o valoroso prefeito Cel. Rodolfo Fernandes, reagiu bravamente ao assalto da cabroeira de Virgulino e dois sequazes deste tombaram baleados sem que os companheiros os pudessem conduzir.

Um dos feridos era Jararaca. Transportado para cadeia, solicitamente o medicaram. Era preciso que ele falasse sem que as autoridades o ouvissem. De fato, só depois de pensado, interrogado e até de fotografado, o Jararaca morreu. Mas ninguém o viu morto, pois o enterramento foi dado como feito alta noite. Uns vinte dias depois me dizia um sertanejo da terra potiguar: Jararaca morreu, mas não foi de morte morrida, foi de morte matada. E com a desventura de quem não tem papas na língua nem é jornalista de Governo, descreveu a cena macabra: Uma boca de noite, noite de lua, o Jararaca, algemado, foi conduzido da cadeia para o cemitério. Chegando lá rodeado de soldados mostraram-lhe uma cova, aberta lá num canto, quase fora do sagrado e lhe perguntaram se ele sabia para que era aquilo. Foi quando o Jararaca falou frocado e destemido: 

- Saber de certeza não sei não, mas porém estou calculando. Não é pra mim? Agora isso só se faz porque eu me vejo nesta circunstância, com as mãos inquiridas e desarmadas! Um gosto eu não deixo pra vocês: é de se gabarem de que eu pedi que não me matassem. Matem! Matem! Que matam, mas é um home. Fique sabendo que vocês vão matar o home mais valente que já pisou nesta... 

Mas não teve tempo de acabar de dizer o que queria. Por traz dele um soldado, naturalmente de combinação com os outros, deu-lhe um tiro de revólver na cabeça. A bala pegou bem no mole do pé do ouvido, lá nele. O Jararaca amunhecou das pernas e caiu, de olho virado. Aí, os soldados o empurraram com os pés pra dentro da sepultura. Só demoraram enquanto tiraram os ferros das algemas. Quando o cadáver rolou pra cova, fizeram luz e espiaram: o finado tinha caído de bruços. Mas, ninguém se ambarassou com isso: por cima do corpo ainda quente as pás de terra deram serviço. Calou-se o narrador para dizer, logo mais, entre compadecido e irônico, num misto de piedade e galhofa. Coitado do Jararaca! Tão valente na hora da morte, mas foi enterrado dando as costas pra este mundo velho, onde ele fez tanta estrepolia.

O nome do pernambucano Jararaca era José Leite de Santana. Ele tinha apenas 22 anos – nos registros policiais, contudo, aparece com 26. 

Mesmo com um rombo de bala no peito, conseguiu gargalhar durante uma entrevista na cadeia. O cabra de Lampião dizia que era por causa das “lembranças divertidas do cangaço”.
Lampião diz qui num corre
Mas correu lá da Matinha
Deu um chouto vergonhoso
E galope armofadinha!

Lampião diz qui num corre.
É mofino corredor!
Já correu de Mata Grande,
Qui poeira levantou.

Raul Fernandes.

http://blogdosanharol.blogspot.com.br/2009/07/cangaco-viii.html

Faca cega... Fé amolada


Antônio  Silvino e a Rolinha "menininha"

O célebre "Governador do Sertão" foi o cangaceiro que cumpriu maior pena, pelos crimes cometidos durante o ciclo do cangaço em que conviveu. 


Pagara pelos seus crimes 23 anos, dois meses e 18 dias de prisão, nas dependências imundas da velha Casa de Detenção do Recife.

Cliquem para melhor visualização e leiam abaixo um texto extraído do magnífico livro: "Antônio Silvino, o cangaceiro, o homem e o mito", página 238,  do renomado autor  e pesquisador, Sérgio Augusto de Souza Dantas.


Matéria sugerida pelo confrade: Ivanildo Alves  Silveira
Colecionador do cangaço, Membro  da  SBEC e do Cariri-Cangaço
Natal/RN

Extraído do blog: 
ampiaoaceso.blogspot.com

Por que Lampião tornou-se o símbolo do cangaço?


Por que Lampião tornou-se o símbolo do cangaço? 

Se não fosse por Lampião, provavelmente não estaríamos falando, hoje em dia, do cangaço da mesma forma.  Ele foi o mais importante de todos os bandoleiros, sem dúvida nenhuma. É só recordarmos dos outros líderes do cangaço.

http://victtor.com.br

Quem se lembra, na atualidade, de Jesuíno Brilhante? Ou de Sinhô Pereira, o primeiro chefe de Lampião? Em geral, apenas os estudiosos do tema.


Sinhô Pereira

Sinhô Pereira, por exemplo, teve uma atuação mais limitada, uma carreira episódica de crimes. Abandonou definitivamente o cangaço em 1922, foi para Goiás e depois, para Minas Gerais, onde mudou de vida. 
O cangaceiro Antonio Silvino

Antônio Silvino, o primeiro “rei dos cangaceiros” foi ferido no tórax em 1914, se entregou à polícia e foi preso. Já Lampião nunca abandonou o cangaço, nem se rendeu. Nunca foi preso. Acabou a vida como líder cangaceiro. Seu bando, no auge, em meados da década de 1920, chegou a contar com 120 homens. Chegou a ter vários subgrupos, que se uniam ao bando principal quando requisitados, uma espécie de “confederação” de cangaceiros, da qual ele era o chefe inconteste. Lampião atuou por mais de duas décadas, num território enorme, em sete Estados nordestinos.  Em seu bando, a partir da década de 1930, também havia mulheres, crianças e animais de estimação, o que deu outra aura para o cangaço.

Toda a estética associada ao cangaço nas artes plásticas e no cinema vem principalmente do período lampiônico, especialmente nos anos 1930, com uniformes e chapéus extremamente adornados (verdadeiros trabalhos artísticos). É bom lembrar que nos anos 1920 e 1930 a mídia estava mais desenvolvida, o rádio, as revistas, os jornais e o cinema divulgavam fotos e histórias de Lampião e seus asseclas. 
Benjamin Abrahão Botto

Benjamin Abrahão chegou a filmar Lampião e seu grupo.  Ou seja, há até mesmo imagens em movimento do “rei dos cangaceiros”. Os bandos lampiônicos tinham uma vida social que incluía música, danças, “esportes” e festas com muita bebida, o que também ampliou a imagem daqueles bandoleiros.  A ferocidade e agressividade dos bandidos dos grupos de Lampião eram notórias, e as práticas de torturas, “sangramentos” e assassinatos com requinte de crueldade eram muito mais significativos do que nos períodos anteriores, certamente.  

Seu Antonio da Piçarra - Coiteiro de Lampião

Não houve um cangaceiro tão inteligente e hábil “politicamente” como Lampião, alguém que conseguisse construir uma rede de apoio de coiteiros tão eficiente, que teve relações com tantos “coronéis” importantes e que atuou num território tão dilatado, por tanto tempo. Por estes e outros motivos, Lampião foi, incontestavelmente, o rei dos cangaceiros.

 http://www.brasildefato.com.br/node/6182

1938 - Angico


Autor: Paulo Medeiros Gastão
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CORONEL NATÉRIO, OU O DILACERADO CORAÇÃO (Crônica)

Por: Rangel Alves da Costa(*)
Rangel Alves da Costa

CORONEL NATÉRIO, OU O DILACERADO CORAÇÃO 

Não haveria nem como falar dos bens, das infinitas riquezas, das contadas e acrescidas propriedades e posses do Coronel Natério Quintiliano Titó. Esse era o nome do homem, do coronel dono do mundo, protetor da jagunçada e de tristezas e solidões infinitas.

Na varanda do casarão, bem perto da escadaria de pedra sangrantemente escrava de onde se avistava uma paisagem num misto de mato, de bicho, de plantação e colheita, depois de tirar por um instante o inseparável charuto do canto da boca, chamou um dos jagunços, aquele em quem mais confiava, e foi falando coisas de se estranhar.

Num gosto de falar nessas coisa não, mas vosmicê é feliz Tibero? Se for pessoa que conhece essa coisa chamada felicidade num precisa me dizer cuma é não. Só me diga se num for, que aí vou comparar com a minha infelicidade. Arresponda homem!...

O jagunço baixou a cabeça, matutou pra responder, então o coronel entendeu tudo. O cabra era feliz e tava com vergonha de dizer qualquer coisa. Mas o trato havia sido esse, não podia reclamar do vergonhoso silêncio do outro.


Coçou a cabeça por cima do chapéu, baforou longamente, se adiantou um pouco mais do frontal do avarandado, fez sinal pro outro lhe acompanhar e continuou na sua tristeza de dá dó, até mesmo perante os sentimentos de um jagunço, de um pistoleiro de marca maior, e que já havia tocaiado uma verdadeira boiada de desafetos. E prosseguiu:

Se sua vida vale nada, cabra veio, a minha num acrescenta um tostão, nem uma nica que só trinca no bolso. Boiada tenho demais, terra que num sei mais nem adonde chega, dinheiro de fazer escada pras nuvem. E acho que até subi nessa nuvem, nesse alto da glória e poder, do mandar e nunca ser desdito, coisa que fiz sem pensar. E o que quero agora é somente descer sem poder...

Mas coronel, o sinhozinho... Mas o dono do mundo nem deixou o outro prosseguir, continuando ele mesmo a falar, mas não sem antes tirar do bolso um pequeno cantil e tomar uma golada de uma bebida forte que sempre trazia consigo. E prosseguiu no passo da lamentação:

Vosmicê mesmo tá como prova do poder que tenho até sobre as pessoas. Quem eu quero vem se ajoelhar a meus pés, pedir perdão até pelo nada feito, implorar um clemência, beijar até minhas botas. E tudo porque exigi que fosse assim, sempre lutei pra impor uma ordem através da ignorância, da arrogância, do medo e da brutalidade. Com meus inimigos não tenho nem muito a dizer, pois suas mãos enlameadas de sangue e o cano de sua arma sempre fumaçando e ainda quente dos disparos sabe quantos já mandei por terra. Mas pruquê tudo isso, meu Deus? Agora me penitencio e pergunto pruque jamais parei pra pensar que um dia ia envelhecer e num momento como esse me penitenciar feito um cristão arrependido. E como tô cabra veio, e como tô...

Mas o senhor, meu sinhozinho, ainda tem tempo de... E o jagunço foi novamente interrompido pelo coronel dono do mundo. Se o matador tivesse oportunidade de olhar nos olhos do patrão estranhamente veria uma feição mais ruborizada, cheia de ressentimentos, e também um olhar cansado e distante, já sem o brilho voraz que era uma de suas marcas. E o impensável é que veria ainda lágrimas mansamente escorrendo, desaguando pela fronte até se espalhar pelos vastos bigodes. E com voz trêmula o homem continuou na sua palavra.

Vosmicê, bem sei, tem mulher e filhos. Tem uma famia, bem sei. Também tenho muitos filhos e netos, mas num sei se tenho famia. Agora todos eles tão na cidade grande na grã-finagem, no bem bom, gastando de minhas posse, do que consegui juntar inté agora. Mas juro que nenhum sabe o que fiz pra chegar adonde cheguei e ter o que tenho. Sabe apenas da fonte rica que tem, mas num sabe a custa de quantas bataia, quantas lutas, mortes e perseguições, tive de enfrentar pra construir esse império de nada...

Mas o senhor... E não foi adiante porque o coronel não deixou. Este prosseguiu dizendo que sabia que os seus dias estavam terminando, nada mais lhe daria felicidade. E mandou que o jagunço escolhesse o que quisesse como forma de pagamento por tudo que já havia feito, ainda que de forma tão cruel. Escolhesse porque com os outros daria o pagamento em moeda.

O jagunço disse que não queria nada não, apenas continuar ao lado do seu sinhôzinho até quando ele vivesse. Então o velho senhor dono do mundo se virou e pediu que ele trouxesse seus netinhos até ali. O cabra não entendeu nada, até pensou que tinha de ir à capital buscar a filharada do patrão. Perguntou quando poderia partir, e então o velho ensaiou um sorriso.


Que nada homem, que nada. Deixe aqueles que dizem de sangue do meu sangue por lá. Eles conhecem bem quem sou e onde vivo. Eu falo dos seus filhos, que agora quero ter como meus netos. Vá logo homem, vá logo e traga também a mulher, o cachorro, e tudo. Aqui agora será sua moradia.

Nos outros, buscava uma tardia alegria. Porém difícil demais de obter diante de tantos remorsos, arrependimentos, tristezas infinitas. Mas um dia, assim que um molecote subiu no seu colo, ele fez um carinho e sentiu contentamento de verdade. Um dos últimos gestos afetivos daquela velha pedra dilacerada.

(*)Poeta e cronista