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segunda-feira, 27 de junho de 2011

O coronel dos coronéis - Delmiro Gouveia

Dilton Cândido Santos Maynard
Delmiro Gouveia

Era um homem temido e extremamente sedutor. Dizem que tinha imã nos olhos e detestava gente preguiçosa. Quando ia à cidade, vestia-se elegantemente, com direito a bengala e cartola.

Estava sempre perfumado. No sertão, manejava com habilidade o chicote e sabia fazer-se respeitar. Em todo o Nordeste, chamavam-no coronel Delmiro Gouveia, ou simplesmente “coronel dos coronéis”.

Coronel Delmiro Gouveia

Em meio à pobreza e ao atraso do sertão, Gouveia criou a usina hidrelétrica Angiquinho, encravada nas paredes de uma cachoeira, para obter eletricidade das águas do Rio São Francisco. Com a energia, impulsionou a Companhia Agro-Fabril Mercantil (CAM), conhecida como Fábrica da Pedra — a primeira a produzir linhas de coser no país.

Delmiro Augusto da Cruz Gouveia nasceu em 5 de Junho de 1863 em Ipu, Ceará. Órfão de pai, mudou-se ainda criança para Recife. Depois de perder a mãe, em 1877, caiu no mundo, dedicando-se a vários ofícios: foi tipógrafo, trabalhou na Brazilian Street Railways Company, virou mascate e chegou a despachante de barcaças no Cais de Ramos. Por fim, ingressou no negócio de peles de bode, carneiro e cabra, criando, em 1896, a Delmiro & Cia.

Graciliano Ramos

Segundo o escritor Graciliano Ramos (1892-1953), Gouveia “adquiriu tanta habilidade que poderia, segundo afirmam os tabaréus, esfolar uma cabra viva sem que ela percebesse que estava sendo esfolada”.

Atacando ferozmente a concorrência, em pouco tempo o jovem empresário figurava nos jornais como o “Rei das Peles”, tornando-se o único exportador de couros do Nordeste para os Estados Unidos. Os lucros lhe trouxeram uma vida de fausto: sua residência, a Vila Anunciada (assim batizada em homenagem à primeira esposa), foi transformada em um espaço para grandes festas e saraus.

Apesar de não vir de família tradicional e de possuir pouca instrução, Gouveia tornou-se presidente da Associação Comercial de Pernambuco. Seu figurino era elegante: ditou moda com os “colarinhos Delmiro Gouveia”, tinha um apreço todo especial por roupas brancas e perfumes importados. A fama de negociante próspero logo foi acompanhada pela de galanteador que enviava rosas e bilhetinhos apaixonados às amantes.


Delmiro visitou a Exposição Universal de Chicago, em 1893, e voltou de lá com a cabeça cheia de ideias. Provavelmente, a experiência inspirou-lhe a criação do Derby, um mercado com 129 metros de comprimento por 28 de largura, 18 portões, 112 janelas e venezianas, e um restaurante. Funcionavam no Derby 264 boxes, todos com balcões de mármore, onde se vendiam hortaliças e verduras.

 Mercado do Derby criação de Delmiro Gouveia

Os visitantes que desembarcavam no porto de Recife eram transportados pelo leito do Rio Capibaribe para um hotel construído próximo ao mercado. Mas a grande atração era mesmo a iluminação elétrica, inédita na cidade. O público lotava o mercado para experimentar os carrocéis e divertir-se com as barracas de prendas, o teatro, as regatas, além do velódromo para ciclismo. Para muitos, o Derby foi a versão pioneira de um shopping center no Brasil.

Do prefeito José Coelho Cintra (1843-1939), Delmiro Gouveia obteve isenção de impostos e outros favores, mas os privilégios não foram suficientes para que mantivesse o empreendimento por muito tempo. No dia 2 de Janeiro de 1900, o Derby ardeu em chamas. O misterioso incêndio teria sido uma resposta à ousadia do empresário, que eliminava intermediários baixando os preços, e certa vez chegou a atacar a bengaladas o senador Francisco Rosa e Silva (1857-1929), poderoso líder político pernambucano e então vice-presidente da República. Delmiro acabou preso, acusado de ter ordenado o fogaréu para receber o seguro.

Elei��o para Presidente em 1898
Francisco Rosa e Silva

Inocentado, passou por uma séria crise conjugal. Para fugir do redemoinho, viajou para a Europa, ficando cerca de um ano longe dos negócios, que iam mal, e do casamento, que desmoronara. Quando, enfim, retornou ao Brasil, estava falido.

Em um ato intempestivo, Gouveia resolveu raptar a menor Carmela Eulália do Amaral Gusmão, por quem se apaixonara. A moça era filha do governador de Pernambuco, Segismundo Gonçalves (1845-1915), importante aliado de Rosa e Silva.

 Delmiro e Eulália, filha do Governador Sigismundo Gonçalves
          
Alguns biógrafos sugerem que Eulina (futura mãe de três filhos seus) foi a “vingança de saias” aplicada por Delmiro em Segismundo, pelos ataques aos seus negócios.

Ex-governador Sigismundo Gonçalves
            
Fugindo para Alagoas, Gouveia estabeleceu-se na cidade de Água Branca, onde recebeu apoio das poderosas famílias Torres e Luna e retomou o negócio de peles e couros. Recuperou-se dos prejuízos, e em Março de 1903 fixou-se na Vila da Pedra. Próxima ao sítio que comprou na região ficava a cachoeira de Paulo Afonso.

O que lhe inspirou um plano ousado: a partir da queda d’água, construir uma hidrelétrica para fornecer energia ao Recife, sua antiga morada, e a outras cidades do Nordeste. Tudo arquitetado, Gouveia associou-se a americanos para viabilizar o projeto. Mas nem tudo saiu como o esperado. O governador Dantas Barreto (1850-1931) teria dito ao negar a concessão: “O negócio é bom. Tão bom que deve esconder alguma velhacaria!” Os americanos pularam fora, mas Gouveia levou a ideia adiante, limitando-a às suas terras.


Enquanto a hidreletricidade era ainda assunto de revistas, Gouveia, de arma em punho, obrigava seus empregados a descer pelo abismo de Paulo Afonso para instalar a usina. A energia obtida moveu a Fábrica da Pedra, que prosperou alavancada pelos tempos da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Os carretéis ingleses passaram a sofrer uma inesperada concorrência no mercado nacional, com o rápido crescimento das linhas marca Estrela. No exterior, Gouveia lançou a linha Barrilejo. Sua clientela estrangeira incluía Chile, Argentina, Peru, Bolívia, Antilhas e Canadá.

Fábrica de Linhas Marca Estrela
O negociante modificou a paisagem do sertão alagoano. A vila pulou de menos de uma dezena para cerca de 250 casas, com uma população de quase cinco mil pessoas.

As bebidas alcoólicas foram proibidas — mas isso, evidentemente, não valia para o rei das peles: instalado em um confortável chalé, abastecido de champanhes caros e vinhos de Bordeaux, tornou-se o “senhor da Pedra”.

Seus cinco automóveis, os primeiros a cruzar aqueles sertões, assustavam os camponeses. Junto com a indústria, levou para a pequena localidade a máquina de gelo, o telégrafo, o cinema (como ingresso das crianças, cobrava o boletim escolar com boas notas), o carrossel, a tipografia, bandas de música e a jornada de trabalho de oito horas, com folgas aos domingos.

A fábrica possuía uma vila operária, onde Delmiro impôs normas rigorosas aos moradores. Havia horário para fechar as portas, vistoria da higiene nas casas e multas para quem cuspisse no chão. Das moças, o cearense exigia vestidos abaixo dos joelhos e cabelos arrumados. Os filhos dos empregados eram obrigados a estudar — se faltassem, os pais recebiam duras advertências. Todos deveriam andar sempre asseados. Arno Pearse, observador estrangeiro, registrou que os operários iam para o trabalho “mais bem vestidos do que o europeu médio no domingo”.

Quando dispunha de tempo, Gouveia fiscalizava pessoalmente o funcionamento de tudo. O perfume forte denunciava sua presença, deixando os empregados em pânico. Deslizes frequentemente levavam os infratores aos troncos das baraúnas próximas à fábrica.

Há relatos de empregados que “fizeram mal” a alguma trabalhadora, e após um dia amarrados na árvore, aceitaram o “conselho” do coronel e se casaram, apadrinhados pelo próprio. Talvez por isso, Mário de Andrade (1893-1945) tenha escrito que “Macunaíma (...) pensou em morar na cidade da Pedra com o enérgico Delmiro Gouveia, porém lhe faltou ânimo. Para viver lá, assim como tinha vivido era impossível”.

Mas se em muitos despertavam temor, as atitudes enérgicas do empresário eram, para outros, simplesmente inaceitáveis. Fosse por desavenças pessoais, fosse por interesses comerciais contrariados, a pele de Delmiro Gouveia estava a prêmio.

A residência do coronel Delmiro Gouveia
           
Aos 54 anos, era um cabra marcado para morrer. E driblar este destino foi um golpe que o magnata não soube dar. “Foi covardemente assassinado a tiros de rifle o grande industrial Delmiro Gouveia, uma das existências mais úteis e laboriosas do Brasil atual”, alardeou a Revista da Semana. Os três tiros foram disparados quando o empresário lia jornal na varanda de seu chalé, no dia 17 de Outubro de 1917. Em sua homenagem, a revista lembrava que ele “foi estabelecer-se próximo à cachoeira de Paulo Afonso, criando a Vila da Pedra, hoje em dia transformada pela sua energia ciclópica num dos mais importantes centros rurais e industriais do país, numa verdadeira civilização encravada dentro da barbárie do sertão nordestino”.

Mário de Andrade

De Mário de Andrade, o acontecimento mereceu o seguinte comentário: “Teve o fim que merecia: assassinaram-no. Nós não podíamos suportar esse farol que feria os nossos olhos gestadores de ilusões, a cidade da Pedra nas Alagoas”.

Em seu testamento, Delmiro deixou uma fortuna calculada em quatro mil contos de réis. E exigiu: “Quero que meu corpo seja inumado em cova rasa, sendo meu enterro feito sem pompa alguma e dispenso também todos os sufrágios e quaisquer outras solenidades”. Assim foi feito. A banda local acompanhou o féretro, mas, além disso, nada mais houve.

Foram presos dois suspeitos, que confessaram um crime que não cometeram após muita tortura. Ao que tudo indica, a ordem partiu de coronéis da região. O processo-crime, revisto anos depois, está repleto de falhas e, para alguns, é um belo exemplar de erro jurídico.

No ar, ficou a suspeita de que o assassinato fora encomendado pela Machine Cottons, grupo inglês que fez uma férrea campanha para adquirir a Fábrica da Pedra e retomar o monopólio no negócio de linhas, perdido durante a Primeira Guerra. Delmiro negou-se a vender a companhia.

Anos após a sua morte, o trust finalmente comprou a fábrica. Os novos donos chocaram a população da Pedra: várias máquinas da CAM foram quebradas e jogadas no leito do Rio São Francisco.

Delmiro Gouveia virou mito. O homem um dia acusado de velhacaria tornou-se um mártir da indústria nacional, vítima do “atraso” sertanejo e da pressão do capital estrangeiro. Embora exista mais de uma dezena de biografias dele, como num romance policial sua vida tem lacunas intrigantes. Ainda assim, exposições, histórias em quadrinhos, filmes, ruas, avenidas e até a Vila da Pedra, hoje uma cidade, levam seu nome. Imponente entre as rochas, Angiquinho lembra as mudanças ocorridas no sertão. Projetada sobre ela, a sombra do coronel dos coronéis ainda passeia impetuosa.

Dilton Cândido Santos Maynard é professor da Universidade Estadual de Alagoas e autor da tese “O Senhor da Pedra: os usos da memória de Delmiro Gouveia (1940-1980)”, (UFPE, 2008). Saiba Mais - Livros:

ARARIPE, J.C. Delmiro Gouveia: a glória de um pioneiro. Fortaleza: BNB, 1997.

MARTINS, F. Magalhães. Delmiro Gouveia: pioneiro e nacionalista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL,1979.
ROCHA, Tadeu. Delmiro Gouveia: o pioneiro de Paulo Afonso. Recife:

Universidade Federal de Pernambuco, 1970.
Saiba Mais - Filmes:

“Coronel Delmiro Gouveia”, de Geraldo Sarno,1977.

“Delmiro Gouveia: o homem e a terra”, de Ruy Santos,1971.

Fonte:

Revista de história.com.br

A MÃO FORTE DA INQUISIÇÃO EM TERRAS POTIGUARES


By Rostand Medeiros

Rostand Medeiros e Mozart Xavier

           Os termos “Inquisição” ou “Tribunal do Santo Ofício” são palavras que até hoje nos lembram duma época de iniquidade, terror e medo. Onde a Igreja Católica extrapolou em todos os aspectos possíveis, a sua atuação como propagadora da fé e carrega até hoje esta nódoa negra na sua secular história institucional.


            Com uma atuação muito forte na Europa, a Inquisição não deixou de tocar as terras do Brasil durante o nosso período colonial e a pequena Natal, na incipiente Capitania do Rio Grande, foi visitada pelos homens que doutrinavam através do terror.


           Pesquisas realizadas apontam que os inquisidores encontraram nestas terras banhadas de sol, casos de eclesiásticos envolvidos em práticas proibidas a eles pela Santa Sé e observaram o comportamento dos moradores desta pequena e irrelevante capitania.

O Padre que fez Propostas Indecorosas a Sete Mulheres em Natal

            O antropólogo baiano Luiz Mott, ao realizar uma pesquisa nos arquivos da Torre do Tombo, em Portugal, encontrou inúmeras denúncias remetidas ao Santo Ofício a partir do Brasil, algumas destas se referiam à Capitania do Rio Grande, atual estado do Rio Grande do Norte.


            Em um artigo intitulado “A inquisição e o Rio Grande do Norte”, o antropólogo mostra que Natal, além de ser o principal núcleo populacional da Capitania, era o local onde habitavam o maior número de pessoas de cor branca, fazendo com que a pequena urbe fosse uma parada obrigatória para os religiosos da Santa Inquisição.
            Para desgosto destes rígidos homens da doutrinação da fé católica, uma das primeiras ocorrências averiguadas na Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação, Matriz da capital do Rio Grande, tinha como acusado um religioso, o Padre Manuel Cardoso Andrade onde ele teria sido denunciado por ter feito propostas indecorosas a sete mulheres e 1750.


           Uma das mulheres, Maria José de Barros, afirmou que o referido sacerdote ordenou que a mesma que fosse buscar o seu atestado de confissão quaresmal na casa do acusado. A denunciante afirma que o religioso, já se encontrando em sua residência, teria prometido fornecer quantos atestados à denunciante desejasse, desde que tivesse com ele o número de cópulas equivalentes em número de atestados.
           O mesmo padre foi acusado de ter possuído algumas escravas, dentre elas a crioula Rita, que afirmou ter tido contato carnal com o acusado duas vezes. Pesou sobre o padre a acusação do mesmo ter feito “cantadas” a três mulheres: Joana Mulata, Ana Maria Crioula e Lucrécia, esta última de nação Angola.
            Apesar da preferência do religioso por mulheres negras, o mesmo foi igualmente denunciado pela tentativa de persuadir mulheres brancas. Entre estas está o relato de Teodósia Maria, esposa de certo Capitão Dias, que acusou o Padre Cardoso de ter feito “propostas indecorosas” no momento da confissão.


           Como as atitudes do Padre Cardoso contra as mulheres, brancas ou não, provavelmente eram de conhecimento da população da pequena urbe, não é difícil deduzir a repercussão que ocorreu quando o mesmo foi denunciado por ter apertado um dos dedos, provavelmente com intenções lascivas, da jovem Josefa, filha do então Capitão Albuquerque Maranhão, descendente do primeiro comandante da Fortaleza dos Reis Magos. Como a moça em questão pertencia a uma família muito influente e poderosa, o acusado se viu diante das garras da Inquisição.
           Contudo, o Padre Manuel Cardoso Andrade não fora condenado, pois falecera em 1762, antes das investigações do Santo Ofício ser concluídas.

Os Padres que Atacavam na Hora da Confissão

           Outro religioso envolvido com os convites para as práticas de torpezas foi o Frei Inácio de Jesus, um Carmelita reformado, da Província de Pernambuco e morador na Freguesia d e São João Baptista do Assú.
           Denunciado em 1752 por Isabel Pereira, mulher casada, onde afirmou ter o acusado aproveitando-se da pouca iluminação da igreja e ter feito nela uma pulsão (masturbação) na denunciante, que assombrada e com medo silenciou diante da agressão sexual.


           Neste caso encontramos um agravante, no dia seguinte ao ato o Frei Inácio concedeu a confissão a Isabel Pereira e ainda lhe deu a comunhão.
           Apesar da denúncia, o Santo Ofício arquivou o processo, mesmo com a confirmação do agravante.
Outro caso foi o que envolveu padre José Inácio de Oliveira, então residente da Freguesia de São João Baptista do Apody, localizada já nos limites do Ceará.
           Pesa em sua acusação o fato de ter tido atos pecaminosos com todas as mulheres que vinham para fazer a confissão.

Contra o “Corpo Fechado” 

             A maioria das denúncias contra eclesiásticos está restrita ao âmbito sexual, entretanto essas práticas não se limitavam apenas a este campo.
Houve uma denúncia pela utilização de representações ou símbolos proibidos pela igreja; no ano de 1765, na Freguesia de Nossa senhora do Carmo de Inhamus, no Ceará, um cidadão chamado Pedro Álvares Correia foi acusado de portar em uma pequena bolsa que trazia no pescoço “patuás de mandingas”. Esta bolsa foi doada, segundo o acusado, pelo Padre André Sapúlveda, da Freguesia do Apodi.


            A denúncia teria partido de outro religioso, o Padre José de Freitas Serrão que chegou a afirmar o motivo do uso destas peças era utilizado para proteger as pessoas que estavam constantemente adentrando o sertão, que neste período era uma área muito violenta e os apetrechos eram utilizados para “fechar o corpo” contra tiros e facadas.

Roupas Indecorosas em Portalegre

           Outras denúncias apontam problemas de comportamento dos religiosos e dos seus fiéis.
             Em um artigo escrito em 2004, o historiador Francisco Firmino Sales Neto, mostra em seu artigo “Pelos ásperos caminhos do deserto: Um estudo das Visitas Episcopais a Capitania do Rio Grande”, que em 1779 o visitado Joaquim Monteiro da Rocha fez severas críticas ao comportamento dos religiosos que respondiam pela Freguesia de Nossa Senhora da Apresentação.


           Desejava o inquisidor que fosse alterado o comportamento dos homens que propagavam a fé católica na pequena Natal, servindo de exemplo para o resto da população. Em suas lamuriosas críticas o visitador comenta “É digno de chorar-se com lágrimas de sangue a pouca reverência, com que se assiste nos templo, e a santa missa, conversando, e tratando matérias profanas, como que estivessem na praça. (…) E os sacerdotes são os primeiros que se profanam a santidade do lugar sagrado, conversando, tratando com menos reverência às coisas sagradas, e provocando aos mesmos seculares, a quem deviam dar bom exemplo”.
            Nesta mesma época, no atual município serrano de Portalegre, no Oeste do Estado, os membros do Santo Ofício apontaram desvios de seus habitantes brancos e negros.
            Estes encontraram mulheres da pequena vila, que não se vestiam da forma considerada correta. O Bispo Dom José Fialho repreendia essas mulheres vestidas de “invenções diabólicas” a se absterem “dos tais vestidos somente usando trajes que mostrem composição e respeito”. O Bispo ameaçava afirmando que “se assim não estão trajadas, usaremos dos meios que nos parecer necessário para evitar as demais lascívias das composições e também advertimos aos senhores de escravos não consintam que estas andem despidas como vulgarmente costumam mais sim cobertas com aquele ornato que seja bastante para encobrirem as provocações da sensualidade”.


              Até o culto a São Gonçalo, santo muito popular no Brasil colonial tinha na Freguesia de São João Batista da Vila de Portalegre uma versão deturpada, causando indignação no reverendo visitador, ao que diz: “É abominável a falta de religião que se observa em alguns dos fregueses desta freguesia, e muito de se estranhar a indiscrença devoção que com, o pretexto frívolo de piedade, costumam festejar o Senhor São Gonçalo em suas casas, admitindo nelas pessoas de um, e outro, sexo, formando danças sem advertirem que semelhantes congressos não podem resultar serviço a Deus e culto ao glorioso santo”.

Contra o Consumo de Jurema em Arês

              Já em Arês, que em 1760 possuía uma população de 949 almas, foi possível identificar um cotidiano religioso bem diverso do encontrado na capital.
              A preocupação dos visitadores que estiveram na Freguesia de São João Batista da Vila Nova de Arês era com o comportamento indígena, “porque sendo os índios naturalmente descuidados”, como colocou em documento o visitador, “deve o pároco aplicar maior desvelo em doutriná-los”.


             Neste documento o visitador dá fortes indicações para que o vigário local repreenda a prática do ritual indígena, conhecida por “Jurema”, ao que diz: “considerando que estes pobres índios, e neófitos necessitam de dobrado cuidado, e vigilância no pároco, para conservá-los na observância dos dogmas, ritos católicos, e apartá-los de algumas devoções filhas de sua brutal e gentílica natureza a que são propensos, e inclinados no que muito lhe encarregamos a consciência de seu pároco principalmente para que não pratiquem a sua célebre, e antiga bebida chamada jurema que constantemente bebem em lugares retirados, por ser bebida forte ficam embriagados, e alienados do juízo, e fingem visões indignas de católicos, cujos erros se devem extinguir quanto couber nas forças de um diligente pároco”.

As Possíveis Causas

            Dentre algumas explicações para se entender essas transgressões, podemos apontar a distância que havia das regiões mais importantes e, portanto, mais populosas da colônia com as áreas mais distantes. A consequência disso foi à falta de fiscalização por parte da igreja, no que se refere à punição de clérigos que de algum modo transgrediram contra os seus princípios enquanto lideres espirituais.


            No caso de uma região pouco habitada e muito afastada dos centros populacionais, como o sertão, o mecanismo de denúncias funcionava assim: qualquer indivíduo podia entrar com uma denúncia a um religioso, que enviava o relato dos fatos em caráter de urgência ao “Comissário” mais próximo, que despachava uma carta secreta para Lisboa na primeira caravela que estivesse de regresso à Europa. Acredita-se que existia uma rede de espiões que tentavam cobrir toda a colônia, que convenhamos era uma tarefa muito difícil.
           Outro fator que pode ser levado em consideração para se compreender a ousadia destes “Homens de Deus”, se refere ao prestígio que esses religiosos tinham conseguido junto aos contingentes populacionais.
            Mesmo que a grande maioria deles não tivesse um conhecimento teológico apurado, gozavam de certo cabedal, uma vez que a sua palavra era legitimada pela população, considerada por esta como a do próprio Deus. O Padre, uma vez aceito como representante do criador, tinha todo o direito de interferir na vida dos habitantes dos locais em que estavam.
Podemos somar a esse fator outra questão; a falta de conhecimento que as pessoas tinham da teologia católica, principalmente as mulheres. Estas não possuíam praticamente nenhuma instrução e quando a tinham se limitava ao âmbito das práticas domésticas. Essa falta de conhecimento as tornava “presas” fáceis para os padres mais audaciosos, que aproveitando o cair da noite, utilizavam a penumbra dos lampiões das igrejas para persuadir as moças e as senhoras a praticarem com eles os mais libidinosos desvios da conduta cristã.
             Esse tipo de crime era conhecido como Solicitação e a sua denúncia ficava registrada no Caderno dos Solicitantes. O termo canônico para este pecado era “solicitatio ad turpia”.

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Extraído do Blog: "Tok de História",
do próprio autor deste artigo, Rostand Medeiros.


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Comunico-lhes que as sua fotos desapareceram da página, não tendo sido excluídas por mim, ao contrário, eu gostaria que tivessem muito mais. 
 Mas um amigo me falou que são problemas que acontecem, e  posteriormente elas retornarão à página.


 

A Chegada de Lampião no Céu

Biografia escrita por: Leonardo Vieira de Almeida

                
                  José Pacheco da Rocha, ou José Pacheco, como é mais conhecido, nasceu no Município de Corrientes, em Pernambuco, residindo algum tempo na cidade de Caruaru, naquele mesmo estado.
              Viveu muitos anos em Maceió, Alagoas, vindo a falecer naquela cidade, provavelmente em 1954. Folhetos de sua autoria foram publicados pela Luzeiro Editora, de São Paulo. Recentemente, a Editora Queima-Bucha, de Mossoró (RN), publicou o folheto A intriga do cachorro com o gato. Além disso, há edições de suas obras pela Catavento, de Aracaju (SE); Lira Nordestina, de Juazeiro do Norte (CE); Coqueiro, de Recife (PE), e por outras editoras.
            Seus folhetos mais importantes são História da princesa Rosamunda ou a morte do gigante e A chegada de Lampião no inferno. As histórias de gracejos são um dos aspectos marcantes dos cordéis de José Pacheco, considerado um dos maiores cordelistas satíricos do Brasil. Mas o poeta se dedicou também a outros temas, como histórias de bichos, religião e romances.


Referências 

GOVERNO DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Secretaria do Estado de Ciência e Cultura e Departamento de Cultura – INEPAC/Divisão de Folclore. O cordel no Grande Rio. Rio de Janeiro: 1978.

LOPES, Ribamar. Literatura de cordel: antologia. Fortaleza (CE): 1983, BNB.

PROENÇA, Manoel Cavalcanti (Org.). Literatura popular em verso: antologia. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo; Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1986.

CARDOSO, Tânia Maria de Souza Cardoso. Cordel, cangaço e contestação: uma análise dos cordéis "A chegada de Lampião no inferno" (José Pacheco da Rocha) e "A chegada de Lampião no céu" (Rodolfo Coelho Cavalcante). Rio Grande do Norte: Coleção Mossoroense, 2003.

Fonte: - Site da CASA DE RUI BARBOSA
(José Pacheco)
 


A CHEGADA DE LAMPIÃO NO CÉU
José Pacheco da Rocha


Lampião foi no inferno
Ao depois no céu chegou
São Pedro estava na porta
Lampião então falou:
- Meu velho não tenha medo
Me diga quem é São Pedro
E logo o rifle puxou

São Pedro desconfiado
Perguntou ao valentão
Quem é você meu amigo
Que anda com este rojão?
Virgulino respondeu:
- Se não sabe quem sou eu
Vou dizer: sou Lampião.

São Pedro se estremeceu
Quase que perdeu o tino
Sabendo que Lampião
Era um terrível assassino
Respondeu balbuciando
O senhor... está... falando...
Com... São Pedro... Virgulino!

Faça o favor abra esta porta
Quero falar com o senhor
Um momento meu amigo
Disse o santo faz favor
Esperar aqui um pouquinho
Para olhar o pergaminho
Que é ordem do Criador

Se você amou o próximo
De todo o seu coração
O seu nome está escrito
No livro da salvação
Porém se foi um tirano
Meu amigo não lhe engano
Por aqui não fica não

Lampião disse está bem
Procure que quero ver
Se acaso não tem aí
O meu nome pode crer
Quero saber o motivo
Pois não sou filho adotivo
Pra que fizeram-me nascer?

São Pedro criou coragem
E falou pra Lampião
Tenha calma cavalheiro
Seu nome não está aqui não
Lampião disse é impossível
É uma coisa que acho incrível
Ter perdido a salvação

São Pedro disse está bem
Acho melhor dar um fora
Lampião disse meu santo
Só saio daqui agora
Quando ver o meu padrinho
Padre Cícero meu filhinho
Esteve aqui mas foi embora

Então eu quero falar
Com a Santa Mãe das Dores
Disse o santo ela não pode
Vir aqui ver seus clamores
Pois ela está resolvendo
Com o filho intercedendo
Em favor dos pecadores

Então eu quero falar
Com Jesus crucificado
Disse São Pedro um momento
Que eu vou dar o seu recado
Com pouco o santo chegou
Com doze santos escoltado

São Longuinho e São Miguel,
São Jorge, São Simão
São Lucas, São Rafael,
São Luiz, São Julião,
Santo Antônio e São Tomé,
São João e São José
Conduziram Lampião

Chegando no gabinete
Do glorioso Jesus
Lampião foi escoltado
Disse o Varão da Cruz
Quem és tu filho perdido
Não estás arrependido
Mesmo no Reino da Luz?

Disse o bravo Virgulino
Senhor não fui culpado
Me tornei um cangaceiro
Porque me vi obrigado
Assassinaram meu pai
Minha mãe quase que vai
Inclusive eu coitado

Os seus pecados são tantos
Que nada posso fazer
Alma desta natureza
Aqui não pode viver
Pois dentro do Paraíso
É o reinado do riso
Onde só existe prazer

Então Jesus nesse instante
Ordenou São Julião
Mais São Miguel e São Lucas
Que levassem Lampião
Pra ele ver a harmonia
Nisto a Virgem Maria
Aparece no salão

Aglomerada de anjos
Todos cantando louvores
Lampião disse: meu Deus
Perdoai os meus horrores
Dos meus crimes tão cruéis
Arrependeu-se através
Da Virgem seus esplendores

Os anjos cantarolavam
saudando a Virgem e o Rei
Dizendo: no céu no céu
Com minha mãe estarei
Tudo ali maravilhou-se
Lampião ajoelhou-se
Dizendo: Senhora eu sei

Que não sou merecedor
De viver aqui agora
Julião, Miguel e Lucas
Disseram vamos embora
Ver os demais apartamentos
Lampião neste momento
Olhou pra Nossa Senhora

E disse: Ó Mãe Amantíssima
Dá-me a minha salvação
Chegou nisto o maioral
Com catinga de alcatrão
Dizendo não pode ser
Agora só quero ver
Se é salvo Lampião

Respondeu a Virgem Santa
Maria Imaculada
Já falaste com meu Filho?
Vamos não negues nada
– Já ó Mãe Amantíssima
Senhora Gloriosíssima
Sou uma alma condenada

Disse a Virgem mãe suprema
Vai-te pra lá Ferrabrás
A alma que eu pôr a mão
Tu com ela nada faz
Arrenegado da Cruz
Na presença de Jesus
Tu não vences, Satanás

Vamos meu filho vamos
Sei que fostes desordeiro
Perdeste de Deus a fé
Te fazendo cangaceiro
Mas já que tu viste a luz
Na presença de Jesus
Serás puro e verdadeiro

Foi Lampião novamente
Pelos santos escoltado
Na presença de Jesus
Foi Lampião colocado
Acompanhou por detrás
O tal cão de Ferrabrás
De Lúcifer enviado

Formou-se logo o júri
Ferrabrás o acusador
Lá no Santo Tribunal
Fez papel de promotor
Jesus fazendo o jurado
Foi a Virgem o advogado
Pelo seu divino amor

Levantou-se o promotor
E acusou demonstrando
Os crimes de Lampião
O réu somente escutando
Ouvindo nada dizia
A Santa Virgem Maria
Começou advogando

Lampião de fato foi
Bárbaro, cruel, assassino
Mas os crimes praticados
Por seu coração ferino
Escrito no seu caderno
Doze anos de inferno
Chegou hoje o seu destino

Disse Ferrabrás: protesto
Trago toda anotação
Lampião fugiu de lá
Em busca de salvação
Assassinou Buscapé
Atirou em Lucifer
Não merece mais perdão

Levantou-se Lampião
Por esta forma falou
Buscapé eu só matei
Porque me desrespeitou
E Lucifer é atrevido
Se ele tivesse morrido
A mim falta não deixou

Disse Jesus e agora
Deseja voltar à terra
A usar de violência
Matando que só uma fera?
Disse Lampião: Senhor
Sou um pobre pecador
Que a Vossa sentença espera

Disse Jesus: Minha mãe
Vou lhe dar a permissão
Pode expulsar Ferrabrás
Porém tem que Lampião
Arrepender-se notório
Ir até o "purgatório"
Alcançar a salvação

Ferrabrás ouvindo isto
Não esperou por Miguel
Pediu licença e saiu
Nisto chegou Gabriel
Ferrabrás deu um estouro
Se virou num grande touro
Foi dar resposta a Lumbel

Resta somente saber
O que Lampião já fez
Do purgatório será
O julgamento outra vez
Logo que se for julgado
Farei tudo versejado
O mais até lá freguês.


Extraído do:"Acorda Cordel"


Observação:

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